Cercado por um mar de prédios, um terreno de 23 000 metros quadrados localizado entre as ruas Augusta, Caio Prado e Marquês de Paranaguá, no centro, é marcado há décadas por disputas imobiliárias, judiciais e de vizinhos. As duas primeiras questões foram superadas com a transferência da posse da terra, que era particular, para a prefeitura, em abril de 2019, após intervenção do Ministério Público, abrindo caminho para a construção do Parque Augusta.
As obras começaram no mesmo ano, mas sofreram atrasos e paralisações. Retomados os trabalhos no fim de 2020, o novo prazo de entrega agora é julho deste ano. O local, que tem menos da metade da área do Trianon, vai contar com cachorródromo, playground, equipamento de ginástica, trilha, deck, redário e uma arquibancada com sete degraus.
É justamente essa última estrutura, de 200 metros quadrados, o principal motivo de intrigas no momento. “Arquibancada é para áreas grandes e abertas, não para um espaço rodeado de prédios. Nem o Parque Ibirapuera, infinitamente maior, tem uma arquibancada que incomoda os vizinhos. Ninguém nos ouviu sobre isso”, afirma Marta Lilia Porta, presidente da Associação de Moradores e Amigos da Consolação e Adjacências.
A insatisfação é corroborada por parte dos habitantes do pedaço. “Não precisamos de um poleiro, precisamos de um parque, um local para respirar e ter paz, mas os ativistas querem morar lá dentro”, diz a síndica de um edifício na Marquês de Paranaguá, que pediu anonimato por dizer receber ameaças ao se mostrar contrária à arquibancada.
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As alegações são rebatidas por outra personagem da história, a advogada Célia Marcondes, presidente da Sociedade dos Amigos e Moradores do Cerqueira César. “A arquibancada será uma miniarena, para recitais, poesias, algo especial para a cultura. Lutei para conseguir vencer essa batalha verde e, não bastassem os inimigos, ainda tivemos de lutar contra pessoas que criaram uma associação só para contrariar a ideia do Parque Augusta”, afirma Célia, referindo-se a Lilia. “Essa senhora mora na Avenida São João e enlouquece o povo da Praça Roosevelt, local que já quis cercar.”
Em nota, a Secretaria Municipal do Verde e Meio Ambiente afirma que o parque foi concebido com a participação pública e que o projeto final foi definido após diversas reuniões abertas e com todas as partes envolvidas.
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Vazio há cinquenta anos, o cobiçado espaço, que abrigou entre 1907 e 1969 o Colégio Des Oiseaux, entrou para valer no radar de ativistas e moradores do entorno a partir de 2002, quando o Plano Diretor previu a implantação de um parque no local. Desde então (veja cronologia no final da matéria), foram anos de discussões políticas, legislativas e judiciárias, com manifestações espaçadas.
Em 2015, após o Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental (Conpresp) aprovar a construção de três torres residenciais, com a condição de que a área verde local, tombada, fosse transformada em parque, o negócio esquentou de vez. Para pressionar o órgão de preservação, integrantes de coletivos pró-parque invadiram o terreno em janeiro daquele ano e abriram o local ao público. A reintegração de posse ocorreu dois meses depois.
Em abril do mesmo ano, um grupo fez novo protesto, dessa vez no lançamento de um livro da arquiteta e urbanista Nadia Somekh, então presidente do órgão de patrimônio da cidade. Quando tudo parecia caminhar para a construção das torres, o Ministério Público, por meio do promotor de Justiça Silvio Marques, entrou em 2016 na Justiça contra as donas do terreno, alegando que elas não atuaram para a preservação ambiental.
Abriu-se caminho para um acordo entre empresários e prefeitura, mas o pagamento da conta pesou contra a municipalidade, afinal, tirar dinheiro do caixa da cidade para a construção de um parque em local que possui duas outras áreas verdes (os parques Trianon e Buenos Aires ficam a menos de 2 quilômetros dali) não estava nos planos do prefeito Fernando Haddad. Uma solução foi transferir os 100 milhões de reais que bancos suíços pagaram à cidade como forma de reparação por abrigar contas secretas do ex-prefeito Paulo Maluf.
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O caso teve uma reviravolta dois anos depois, quando o então prefeito João Doria propôs um acordo: a permuta de terrenos. Cyrela e Setin trocariam a posse da terra do centro por outra na Zona Oeste. Com isso, o dinheiro da Suíça foi destinado à construção de creches. Na época, Vejinha trouxe detalhes inéditos do negócio, que incluía a permissão de as empresas erguerem um empreendimento na Rua Sumidouro, em Pinheiros, onde funcionam uma sede da Companhia de Engenharia de Tráfego (CET) e a subprefeitura local.
Além disso, as firmas teriam de construir por conta própria o Parque Augusta, um boulevard na Rua Gravataí (ligando o espaço à Praça Roosevelt), uma creche e um centro de acolhimento para moradores de rua. Também ficariam obrigadas a reformar duas praças. “A proposta não caminhou, pois o terreno de Pinheiros tem contaminação, por se tratar de uma área que abrigou um aterro sanitário no passado, e uma construção nova ali se mostrou muito complexa”, afirma Antonio Setin, da construtora que leva seu sobrenome.
A saída encontrada foi lançar mão de um instrumento novo no ordenamento da metrópole, a transferência de potencial construtivo, instituído em 2011 pelo Estatuto da Cidade. “Com isso, nem a prefeitura precisou fazer o cheque nem o parque foi inviabilizado”, conclui Setin, que contratou o arquiteto Samuel Kruchin para restaurar a Casa das Araras e o antigo portal, ambos tombados e únicos remanescentes originais.
Pelo acordo, as duas construtoras terão direito a erguer 1 129 metros quadrados de áreas em seus empreendimentos. Além de entregar o terreno do centro, as empresas arcaram com os custos de implantação do parque, atualmente em 11 milhões de reais. As demais obrigações foram suprimidas, com exceção do boulevard, que custará 250 000 reais, será bancado pelas empresas, mas cuja construção ficará a cargo da prefeitura.
O resultado do Parque Augusta abriu um precedente em São Paulo. “Depois dele, surgiu uma rede de movimentos que lutam pela construção de mais áreas verdes, principalmente na periferia”, afirma o arquiteto Augusto Aneas, do Movimento Parque Augusta e um dos fundadores da Rede Novos Parques. Um dos “filhos” do futuro Augusta pode nascer na Avenida Vila Ema, na Zona Leste. Com 17 000 metros quadrados, um terço do tamanho do Parque Trianon, o local pertence a uma construtora e a negociação com a prefeitura ainda segue. A ideia, a exemplo do caso da Rua Augusta, é utilizar a transferência de potencial construtivo. Além desse, outros dois possíveis parques estão em tramitação: o Linhas Corrente, no Parque São Lucas, na Zona Leste, e o Itapaiúna, no Panamby, na Zona Sul.
Antes de ser candidato a parque, o Augusta abrigou o Colégio Des Oiseaux, que funcionou entre 1907 e 1969. Tratava-se de um palacete de três andares e 22 metros de altura. A estrutura foi demolida em 1974, assim como o prédio da Escola Santa Mônica, no mesmo lote, destinado a alunos pobres e que não tinham acesso ao prédio principal.
Parte dessa história está enterrada no próprio terreno, motivo que levou o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) a determinar escavações no local há um ano, paralisando as obras, que já tinham sido iniciadas. Havia a expectativa de que o espaço pudesse abrigar material arqueológico pré-colonial, o que acabou não se concretizando (só acharam itens como pisos e tijolos).
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“Uma das coisas que mais nos chamaram a atenção foi escavar a parte da Escola Santa Mônica, que poucas pessoas sabem a respeito. O Des Oiseaux era monumental, mas o outro era mais singelo. Depois das escavações, encontramos relatos de que as alunas mais pobres não podiam se comunicar com as ricas”, afirma Paula Nishida, supervisora do Centro de Arqueologia de São Paulo. “O objetivo da arqueologia é contar a história enterrada. E a do Parque Augusta é mais rica do que esperávamos. Todo mundo fala do que é bonito (em relação ao colégio de elite), mas por trás tem seres humanos de outras classes sociais que nunca foram retratados. A arqueologia nos faz pensar que sociedade somos”.
Agora, a luta de Nishida será transformar o Parque Augusta em um local arqueológico permanente e retomar escavações em outros pontos do terreno. Foram abertas mais de 100 valas e algumas deverão permanecer destapadas para a visualização do público. Para isso, a arquibancada da discórdia poderá ser útil.
“Fiquei um ano e meio doente”
Nadia Somekh, ex-presidente do Conpresp e professora de arquitetura do Mackenzie, que foi criticada por ativistas por defender habitação
“Eu tenho direito de defender o que penso. O Conpresp não autorizou a construção dos prédios, o que é feito pela prefeitura, mas apenas aprovou o modelo de ocupação, que poderia gerar recursos para um parque. Estabelecemos diretrizes para ser um parque aberto e ser aquilo que a população precisava na época. Eu achava que lá deveria haver também habitação. Mas havia muitas pessoas contra a verticalização. Gente, vai morar em Gonçalves (MG). Os ativistas que foram ao lançamento do meu livro e o rasgaram na frente das minhas sobrinhas-netas me deixaram um ano e meio doente. Me chamaram de corrupta. Eu tenho toda uma trajetória e estava defendendo interesses públicos. No fim, o modelo vencedor foi o do parque e eu tiro o chapéu para o ativismo. Eu estava tentando conseguir o possível e eles conseguiram o impossível”.
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Publicado em VEJA São Paulo de 10 de março de 2021, edição nº 2728
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