Um mar de gente cheia de glitter toma cartões-postais da cidade, como o Monumento às Bandeiras e a Avenida Brigadeiro Faria Lima, em um movimento que começou no último sábado (23) e seguirá até o domingo (10). Quem diria… antes com a fama de túmulo do samba, a cidade evoluiu para o maior Carnaval do país, com números mais fartos do que a forma do Rei Momo: 516 blocos, mais de 12 milhões de foliões (cerca de 30% deles, turistas) e uma movimentação de 800 milhões de reais, cerca de 15% a mais do que no ano passado.
Na contramão desses números espetaculosos, há blocos que se dispõem a oferecer uma experiência divertida, mas sem tanta muvuca, com público na faixa das 100 pessoas. É o pessoal do bairro, da família e até das peladas de futebol que decidiu criar um grupo para chamar de seu. “Nossa equipe não censurou nada, só verificou se o trajeto proposto não atrapalharia a cidade”, diz Alexandre Modonezi, secretário das subprefeituras, órgão responsável pela organização da folia por aqui.
Em cada um desses “microblocos”, deveria haver dois banheiros químicos, além da patrulha de agentes da CET e da Polícia Militar. A estrutura montada com a verba de 16 milhões de reais do patrocínio da Ambev falhou em alguns locais até agora. Segundo a assessoria de imprensa das subprefeituras, o fornecedor não entregou parte dos banheiros, mas tudo será normalizado nos próximos dias.
“É a retomada das ruas pela população”, observa Zé Cury, fundador do Fórum dos Blocos de Carnaval de São Paulo. “Nossa festa de rua é democrática, não tem camarotes, resistindo à pressão das empresas, e só tende a crescer.” A seguir, conheça dez pequenas iniciativas na terra dos blockbusters.
O xote das meninas
“Homens são muito bem-vindos, mas eles ficarão na plateia, ou, no máximo, ajudarão a carregar instrumentos, porque o palco é exclusivo nosso”, afirma a percussionista Rafaella Nepomuceno, 42, líder do bloco feminino Eu Acho É Coco. No sábado (9), a partir das 13 horas, na Praça da Nascente, na Pompeia, cerca de oitenta mulheres homenagearão a orixá Iansã, vestidas com saias rodadas e tocando percussão. Na estreia delas no Carnaval, nada de microfones nem carro de som: com pandeiros e tambores, as moças tocarão coco, espécie de samba de roda. Rafaella teve contato com o ritmo ainda menina em terreiros de umbanda, em sua terra natal, Brasília. Mudou-se para a capital paulista em 2006 e, por pouco, não se tornou mãe de santo. “Mas decidi cultuar minha mãe espiritual por meio da música”, conta. Desde 2014, quando terminou um casamento de seis anos, ela faz shows com o repertório regional e atualmente consegue seu sustento daí. “Graças ao coco, pude sair de um relacionamento opressor”, confidencia. “Como estrelamos uma apresentação, considero o bloco uma forma de empoderamento feminino.”
Folia fitness
A ideia de juntar a turma da academia para curtir um dos principais feriados surgiu no ano passado e se tornou um esperado evento. De adolescentes ao pessoal da terceira idade, os frequentadores da Atitude, espaço fitness no bairro do Ipiranga, transformam, pouco antes da folia, as classes de zumba em aulas temáticas para fazer bonito no samba no pé ao longo do desfile nas redondezas do Parque Independência. “Sempre celebramos datas como o Dia das Mulheres e o das Crianças e, com o Carnaval começando a ganhar força, pensamos em montar nosso bloquinho’”, diz Edinho Moreno, 37, o Edinho, dono do local e idealizador do Bloco da Atitude. Na tarde do sábado (23), ocorreu a segunda edição do evento, que reuniu cerca de 100 pessoas. Na banda da galera fitness, a cerveja costuma ser trocada por água e isotônicos. Para dar energia à turma, barrinhas de cereais e doces light circulam por lá. Seria uma tarde “10, nota 10” se não fossem os problemas estruturais sob a responsabilidade da prefeitura. A equipe da CET apareceu no dia anterior, deixou cinco cavaletes, mas na hora H não surgiu ninguém. “Fechamos as ruas ‘no braço’ e com a ajuda de policiais”, conta Edinho, que exibe seus bíceps em dia de professor de musculação. Além disso, nada dos banheiros químicos prometidos. “Em 2020, vamos atrás de mais patrocinadores para não depender do governo”, promete o empresário.
Marchinhas com arranjos de rock
O nome da banda de rock nova-iorquina Talking Heads (ou Cabeças Falantes, em português) virou Cabecinhas Tântricos na “tradução livre” do músico Walter Egea, 52, fã de David Byrne. Com visual exótico (vale até roupão), ele e sua turma se apresentam desde 2015 no Carnaval em frente ao Centro Cultural Ad Libitum, no Tatuapé. Ao longo do ano, ali funciona uma ONG, com aulas de teatro, dança e, claro, música. Para “tocar fogo na casa”, o pessoal ensaia durante meses marchinhas e clássicos do samba com instrumentos típicos do rock, da guitarra ao saxofone. “Aqui não tem nada da mistura estranha de transformar o Carnaval em baile funk ou rave”, alfineta. Os músicos executam clássicos de Carmen Miranda a Gilberto Gil. Por ficar afastada do circuito tradicional da folia, como Pinheiros, nunca há mais de 100 pessoas naquela rua. “Apesar de fazer questão de mostrar música boa, não tenho pretensões de arrastar multidões”, diz Egea. A apresentação “tântrica” deste ano será no sábado (9), na Rua Torrinha, no Tatuapé.
Mamãe, eu quero sambar
Boa parte dos pais atesta: a chegada do primeiro filho transforma completamente o cotidiano. A fisioterapeuta Cristine Fiore, 33, teve Lucas há um ano e dez meses. Para lidar com suas questões de “mãe de primeira viagem” — dúvidas sobre até quando um bebê pode mamar ou os cuidados respiratórios na hora de colocar a criança para dormir —, ela passou a frequentar um grupo de mulheres. No fim do ano passado, surgiu um debate importante na turma. “Amamos Carnaval, pesquisamos e vimos que não havia um lugar ideal para curtir com nossos pequenos aqui perto de casa, na Zona Leste”, diz. Fizeram uma vaquinha, arrecadaram cerca de 3 000 reais e criaram o Samba Tetê, para até 100 pessoas. Com oficinas infantis e um festival de bolhas de sabão, pais e filhos se esbaldaram juntos pelas ruas da Penha no domingo (24). Na trilha sonora, nada de Galinha Pintadinha. As mamães-DJs puseram para tocar hits da Xuxa e dos anos 90. “No fim, apareceram 600 pessoas, ou seja, seis vezes o que esperávamos”, celebra Cris, que garante a farra para 2020.
Passeio com os LPs de Gal
Se o nome dela é Gal, o do artista plástico Arthur Scovino, 39, poderia ser perfeitamente algo como “fã número 1”. A paixão pela cantora baiana tornou-se pública em 2014 na Bienal Internacional de Arte de São Paulo, quando ele exibiu a performance Levando os Elepês de Gal para Passear. Nela, fotografava a capa dos bolachões em pontos turísticos de diversas cidades. No fim do ano passado, o artista, que vivia em Salvador, mudou-se para a capital paulista, viu que as inscrições dos blocos de rua continuavam abertas, achou “divino maravilhoso” e, em um rompante, arriscou por lá o seu projeto carnavalesco. Foi aprovado. “Nem acreditei e, no início, nem eu mesmo me via como público de um bloco”, lembra. A apresentação será no sábado (9), a partir das 15 horas, em frente à Estação da Luz. Trinta amigos dele já confirmaram presença. O pré-requisito é aparecer por lá com algum cartaz ou peça em homenagem à estrela. Por ora, a turma não descolou um trio elétrico. “Penso em pegar uma bicicleta emprestada e colocar na garupa um toca-discos com um sisteminha de som”, planeja. Nem precisa dizer qual será a trilha sonora, certo? Agora, se a musa vai aparecer… “Convidei porque sei que ela mora na cidade. De repente…!”, sonha Scovino.
No ritmo dos casais
Morador do bairro do Limão, Felipe Santos Silva, 29, teve um acesso de riso ao receber um vídeo no WhatsApp há dois anos. Era uma turma de dez homens trôpegos, que, digamos assim, apostou que “cachaça é água”. Felizes da vida, eles cantavam e dançavam seguindo um carro velho no Carnaval. O dono de pet shop encaminhou a piada ao Coleiras, grupo na rede social que reúne os amigos de futebol. Todos casados ou em relacionamento sério ou, como dizem, “encoleirados”. “E se a gente montasse um bloco assim?”, perguntou. Com o aval das respectivas, todos toparam. A cena foi reproduzida pela primeira vez no ano passado. A galera fez uma playlist de axé, funk, entre outros hitschiclete, e a reproduziu no som potente de um Volkswagen Polo, de um dos rapazes. Com uma vaquinha entre eles, compraram 1 200 reais em cerveja, colocaram a bebida em um isopor no banco de trás e saíram pelas ruas da Zona Norte. Para este sábado (2), a partir das 10 horas, descolaram mais verba: 2 000 reais em cerveja e 800 reais para alugar um carrão de som. “Estamos crescendo. Quem sabe um dia a gente não vira um Casa Comigo do Limão?”, sonha Silva.
Batuque em família
Amigas há décadas, as famílias Lopes, Aguilar e Mendes moram na mesma rua, a Izabel Redentora, em Itaquera. Nos churrascos nos fins de semana, o batuque ficava a cargo do percussionista Adriano Alves Lopes, 40, o Jamaika. De tanto ouvir “tio, posso tocar também?”, o músico decidiu dar aulas nas tardes de domingo e às segundas à noite. Com a parentada afinadíssima no fim do ano passado, inscreveu seu bloco na prefeitura e o chamou de Hidrataàsom. “Cerveja, água, leite, não importa o que beber, a música será sempre boa”, garante. Na manhã do domingo (24), os “hidratados” fizeram sua estreia pelas ruas do bairro. “Superou muito minhas expectativas”, emociona-se. Jamaika estimava que viessem 100 pessoas, mas, no fim do percurso, já havia mais de 200 por lá. Aos moldes de pioneiros como o Bangalafumenga, o músico pretende profissionalizar seu grupo, fazer festa o ano todo e crescer com a folia no pedaço. “O povo de Itaquera viu que não precisamos ir à Zona Oeste para pular Carnaval”, afirma.
Diversão acessível
Pelo menos uma vez por mês, um grupo de cerca de trinta portadores de deficiência física se reúne em diversos pontos da cidade para discutir sobre sexualidade. “A sociedade trata nosso corpo como se ele não fosse sexualmente atrativo. Precisamos reverter essa ideia”, defende o assessor técnico Tuca Munhoz, 61, cadeirante em consequência de uma sequela de poliomielite. Há três anos, ele fundou o coletivo batizado de Yes, We Fuck (ou “Sim, Nós F…”), nome de um documentário espanhol inspirado no slogan “Yes, we can” (“Sim, podemos”), da campanha do ex- presidente americano Barack Obama. A causa é séria, mas o pessoal também se diverte. No ano passado, criou o bloco Sim, Phodemos. “Com essa grafia, evitamos o palavrão e conseguimos aparecer sem as reticências”, brinca Munhoz. Pelo segundo ano consecutivo, a turma tomou as ruas da Vila Mariana no pré-Carnaval, na tarde do domingo (24). “Foi perfeito”, celebra. A prefeitura disponibilizou banheiros químicos com acessibilidade. Músicos surdos cuidaram do som, impecável. Cerca de oitenta pessoas — a maioria portadora de deficiência — caíram na gandaia. Destaque para o bumbum de plástico, colocado na parte de trás das cadeiras. “Se as passistas podem exibir seu corpo, a gente também pode.”
Sob a proteção dos orixás
Os olhos de Mãe Helena, 70, líder do terreiro Quilombo de Oya, em Atibaia, no interior, encheram-se de lágrimas ao ver as ruas do Itaim Paulista tomadas por seus “meninos”, vestidos de branco, entoando canções em homenagem aos orixás. Era o bloco Filhos de Oya, que fez sua estreia na tarde do domingo (24). “Mais do que uma apresentação, nosso percurso foi uma bênção para proteger todos os moradores da cidade durante as próximas semanas”, afirma Cristiane Ribeiro, 37, assistente financeira e porta-estandarte no grupo que cultua a deusa Iansã (também conhecida como Oya). Pelo caráter religioso do coletivo, nada de bebida alcoólica na diversão. “É bom assim, uma folia consciente, pensando em nosso bemestar e também no do próximo”, diz.
Carnaval e futebol
Fã de futebol, Bob Marley resumia o esporte como “uma forma de música e liberdade”. Assim, o ícone do reggae tornou-se o símbolo dos atletas do RC Ramalho, time de várzea criado por moradores da Rua Conselheiro Ramalho, na Bela Vista, em 1991. “A gente jogava bola no campinho e, para acabar com as divergências entre santistas, palmeirenses e corintianos, nós formamos nosso próprio time”, conta Antonio de Toro, 40, presidente da agremiação. Após as partidas, jogadores e torcedores “batem ponto” no Bar do Jackson, o patrocinador da equipe, para rodadas de cerveja ao som de batuques. Com a retomada dos bloquinhos na cidade, a turma se dedicou aos ensaios e criou o Ramaloucos, em 2015. No domingo (10), a partir das 12 horas, será o desfile. O pessoal já tem na ponta da língua a letra do samba-enredo criado em conjunto, com o refrão: “A comunidade não morreu / quem diz sou eu / até posso afirmar / esse orgulho carrego em qualquer canto que eu vá / a nossa amizade continua / eu cresci naquela rua / sou produto do lugar”. Ah, sim, hits de Marley, na linha Could You Be Loved, também estão garantidos.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 06 de março de 2019, edição nº 2624.