São Paulo — A tentativa de mudança do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) para o Ministério da Justiça fazia parte de um “projeto político” em uma eventual instrumentalização do órgão, e o presidente Jair Bolsonaro faz um freio de arrumação ao interferir na estrutura e na nomeação desse colegiado e de outras instituições, como a Polícia Federal e a Receita Federal, afirmou o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal.
“O Coaf tinha que ter ficado onde estava, que era o Ministério da Economia, vinha funcionando bem. A mudança para o Ministério da Justiça fazia parte de um projeto político e talvez um desejo de sua instrumentalização”, disse Mendes em entrevista exclusiva à Reuters no seu gabinete, na noite de quinta-feira.
“Não sei se já estava ocorrendo ou não, mas o chefe do Coaf (Roberto Leonel, ex-auditor da Receita) era aquele que estava instrumentalizando a Receita em Curitiba segundo esses dados que estão aí, muito provavelmente isso já deveria estar ocorrendo”, acrescentou.
Questionado sobre como seria o projeto político, Mendes respondeu: “Ter acesso a informações e eventualmente vazá-las, chantagear pessoas. Dá um poder político imenso para quem tem controle disso.”
O ministro afirmou não ter “a menor dúvida” de que isso já estava ocorrendo em relação a ele e a sua família –em fevereiro noticiou-se que uma análise fiscal da Receita apontariam supostas práticas de crimes atribuídas a ele e a sua mulher, Guiomar Feitosa.
“Quando aparece (Deltan) Dalagnol conversando que estava investigando o Toffoli na Receita, é óbvio que era isso”, disse o ministro, referindo-se a mensagens vazadas que supostamente seriam do coordenador da força-tarefa da Lava Jato.
“A minha pergunta em relação à Receita não foi por que a Receita fez, mas quem mandou? É isso que estava ocorrendo, tanto é que o fiscal que elabora o primeiro relatório, o pré-relatório, estava prestando serviços à Lava Jato, Calicute, no Rio de Janeiro. Portanto, misturaram estações”, argumentou.
“E por que eu e o Toffoli? Porque, segundo os critérios deles, votávamos contra os interesses que eles defendiam. Portanto, na verdade, se adotou um modelo policialesco, mas felizmente comandado pelas ‘organizações Tabajara’”, acrescentou.
“Quando isso começa a ser feito, isso se aproxima de organizações criminosas”, criticou o ministro, para emendar o que via como perigo nos rumos que o Coaf vinha tomando. “E esse sujeito (Leonel) tinha sido promovido, saído de Curitiba e vindo (para Brasília). Imaginemos que ele replicasse essas práticas no Coaf, muito provavelmente seria utilizado para esses fins o que não era razoável.”
Lava Jato
Para Mendes, o vazamento de supostas mensagens do hoje ministro da Justiça e Segurança Pública, Sergio Moro, então juiz da Lava Jato em Curitiba, de Dallagnoll e outros procuradores teve um “aspecto positivo”.
“Levou a todos fazer uma pausa para reflexão, um mea culpa porque havia esse entusiasmo quase que infantil que levou essa gente talvez ao delírio”, disse.
Principal crítico dos métodos da Lava Jato no Supremo, Mendes elogiou a iniciativa de Bolsonaro em determinar trocas no comando do Coaf, Receita e PF — alvo de fortes críticas nas últimas semanas — e negou que tenha havido pressão da corte para que o presidente promovesse essas mudanças.
Questionado se o presidente estaria fazendo uma espécie de freio de arrumação nesses órgãos, Mendes concordou: “Tenho a impressão que sim.”
“É natural que, em algum momento, o sistema político chamasse atenção e reagisse em relação a isso. A Lava Jato tinha virado uma espécie de Santíssima Trindade: ela investigava, ela julgava, ela condenava, ela fazia a lei. E o Brasil é um país muito complexo. Quem teve essa ilusão é um pouco simplista ou simplória. Não dá para achar que vai se manietar as instituições por muito tempo”, destacou.
Para o ministro do STF, a autonomia levou a essas “parcerias esdrúxulas” e os órgãos ganharam tamanha independência que “começaram a pensar em autogestão”. Ele ressaltou, no entanto, que isso não existe.
Mendes rechaçou a crítica de que a interferência de Bolsonaro nesses órgãos abriria caminho para reprimir investigações que poderiam atingi-lo ou a pessoas próximas a ele.
“Não tem como o presidente determinar ao delegado que se mande um inquérito para ele, estaria havendo supervisão indevida. Aqui há supervisão judicial”, disse.
“Há aspectos positivos dessa institucionalização dessa autonomia. E aspectos negativos, talvez o governo Bolsonaro tenha dado um choque de realidade com esses elementos”, frisou.
PGR
Mendes também defendeu a prerrogativa de o presidente escolher um nome para procurador-geral da República fora da lista tríplice elaborada pela associação de procuradores. Ele disse que isso foi feito durante o governo Fernando Henrique Cardoso –do qual fez parte– e que nos governos do PT o presidente, ao escolher somente da lista, “demitiu-se de qualquer controle”.
“(O presidente) perdeu o poder de escolha e passou ser escolhido pela associação. No fundo, isso virou um grande sindicato. O procurador-geral (Rodrigo) Janot não foi nada mais — pelas qualidades jurídicas —, foi escolhido por ter sido ex-presidente da associação e isso tem a ver com a grave desinstitucionalização que ocorreu”, criticou.
O ministro disse que não há como o presidente, mesmo com uma eventual escolha fora da lista tríplice, impedir investigações contra Bolsonaro e pessoas próximas da família.
“Não, porque a instituição tem toda a sua autonomia. Se indicar o procurador-geral, fará o procurador-geral. É um sistema de ‘checks and balances’”, afirmou, citando que procuradores de primeira instância podem atuar, em determinados casos, sobre ações do governo.
Abuso de autoridade
Mendes elogiou a aprovação pelo Congresso do projeto de lei de abuso de autoridade, outro alvo de críticas e que está na mesa de Bolsonaro para decidir se sanciona ou veta. Embora não tenha se debruçado no detalhe sobre a última versão da proposta, ele disse que era preciso fazer “alguma coisa desse tipo”.
“Não só para promotores e juízes, mas para delegados, policiais, guarda da esquina, a gente está toda hora se deparando com excessos dos parlamentares em CPIs, todo aquele que exerce esse tipo de poder”, disse.
“Vejo essa campanha um pouco por reclamação como perda de um poder simbólico, éramos soberanos e estamos deixando de sê-lo. Porque, a rigor, quem vai aplicar, oferecer denúncia se existe ou não abuso de autoridade é o promotor e quem vai decidir é o juiz. Por que desconfiança em relação ao colega? Parece até contraditório”, completou.
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