A cidade de São Paulo começa sua lenta caminhada de volta à normalidade. As novas regras da quarentena no estado anunciadas na quarta-feira (27) preveem a reabertura parcial de alguns comércios e serviços do município a partir da segunda (1º), como shoppings centers, escritórios e lojas de rua. É, ainda, um ensaio. Eles devem operar em horários reduzidos e manter uma lotação máxima de 20%. A evolução para uma fase mais liberada (ou o retorno à restrição total) vai depender da taxa de contágio pelo coronavírus e da ocupação das UTIs. De qualquer maneira, uma série de empresas e autoridades públicas da capital já têm planos bem definidos para essa retomada. Destrinchar essas medidas, assim como pesquisar outras metrópoles do mundo onde o retorno está em marcha, é fundamental para entender como será a vida (e a economia) de São Paulo nos meses a seguir. Um periscópio para observar o futuro próximo.
Os projetos mostram, por exemplo, que shoppings e estádios de futebol tencionam transformar seu estacionamento em cinema drive-in. Revelam também que uma das principais empresas financeiras do país, agora adaptada ao home office, faz projetos para se mudar da cidade. E que há churrascaria que não vai mais servir as carnes em “espeto corrido” ao lado das mesas. Além de uma infinidade de outras adaptações que vão de parques a casamentos. “Será um recomeço difícil. A capital e seus negócios terão de se ajustar a um fluxo menor de pessoas”, afirma Cesar Caselani, da FGV. “Em São Paulo, a retomada será mais lenta do que em lugares que não sofreram tanto com a Covid-19, até pelo impacto psicológico da pandemia”, diz. Os detalhes sobre a nova rotina você confere à seguir.
O trabalho “descentralizado”
A XP ocupa os últimos seis andares de uma das duas torres do São Paulo Corporate Towers, um arranha-céu espelhado com trinta pavimentos e dezoito elevadores sociais (em cada torre) em frente ao Shopping JK Iguatemi, no Itaim. Bem, por enquanto. No dia 13, a empresa anunciou uma decisão importante: até o fim do ano, qualquer um dos 2 700 funcionários que quiser trabalhar em casa— o popular home office — está autorizado a fazê-lo. No momento, 3% deles vão ao escritório. “Nossa vontade é manter isso para sempre. Esses sete meses serão um laboratório”, diz Guilherme Sant’Anna, sócio responsável pela área de recursos humanos da companhia. Para o executivo, o modelo aponta para o “escritório do futuro” em São Paulo. “Imaginamos que as empresas terão escritórios descentralizados. As pessoas poderão trabalhar em casa, em um café, em um coworking parceiro — ou, eventualmente, na empresa. Vamos trocar as mesas próprias dos colaboradores por estações rotativas, que serão usadas por quem optar por ir ao escritório”, ele explica.
Para os especialistas, a mudança terá impacto na paisagem paulistana. “No passado, as pessoas vieram a São Paulo por questões econômicas. Se elas não precisarem da cidade para trabalhar, uma parcela vai se mudar”, afirma Ricardo Pereira Leite, ex-secretário da Habitação do município. Mesmo atividades que nunca foram remotas têm se adaptado à nova realidade. “Os operadores de mercado sempre atuaram lado a lado, para tomar decisões rápidas”, justifica Sant’Anna. “Agora,estão conectados por vídeo. A maioria prefere o novo modelo.”Parece um caminho sem volta. “Já temos planos de sair (do Corporate Towers) e ir para uma sede própria, no entorno de São Paulo. Um prédio mais horizontal e com mais natureza”, revela o executivo. “Se der certo, outras empresas farão o mesmo.”
Distância nos escritórios
Nos Estados Unidos e na Europa, empresas reabertas mostram que a etiqueta nos escritórios será o distanciamento. A imobiliária Cushman & Wakefield, presente em setenta países, lançou o projeto “6 Feet Office”, que estabelece a distância mínima de 2 metros entre funcionários. A americana Blitz, de arquitetura e design, criou um “guia pós-Covid-19”. Os novos layouts colocam colaboradores de costas um para o outro (e não lado a lado) e as salas de reuniões não têm mais de dez pessoas.
Marcas nos elevadores
O Pátio Victor Malzoni, o gigante edifício no número 3477 da Avenida Brigadeiro Faria Lima, se prepara para a volta do movimento nos escritórios. O uso de máscara será obrigatório e os elevadores levarão no máximo cinco pessoas, que devem se posicionar sobre adesivos no piso. A administração comprou câmeras para monitorara temperatura dos frequentadores. As recepções do prédio contarão com barreiras de acrílico para restringir o contato dos atendentes com o público.
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Para abrir portas
A empresa portuguesa 3DWays, especializada em impressão em 3D, criou pequenas peças que livram as mãos de abrir portas ou acionar elevadores, por exemplo. Entre os aparatos, há um apoio para rodar a maçaneta com o antebraço e um suporte de bolso que pode ser usado para pressionar botões ou girar chaves. O melhor: além de aceitar encomendas, os criadores prometem disponibilizar, mediante contato na página da 3DWays no Facebook, o projeto de cada item gratuitamente para quem quiser imprimir em 3D por conta própria, de qualquer lugar do mundo. Além disso, a empresa distribuiu alguns dos produtos a hospitais, como viseiras de proteção para profissionais de saúde.
Escolas e universidades
No ensino básico estadual e municipal, os primeiros dias de atividades presenciais terão provas para medir o nível de aprendizado absorvido na quarentena. Entre as privadas, o Colégio Poliedro vai desativar o ar-condicionado das salas e instalar maçanetas que podem ser abertas com os pés. Nas faculdades, a Universidade Mackenzie tornará obrigatório o uso de viseira e máscara no câmpus, algo parecido com o adotado em escolas da comuna de La Grand-Croix, na França. Por ora, processos seletivos são uma incógnita: tanto o Enem quanto o SAT, dos EUA, foram adiados: uma edição da prova americana seria dada em junho, mas foi transferida para agosto. Universidades da Europa preferiram descartar a volta neste momento: em Portugal, a Universidade de Lisboa cancelou o ensino presencial até o fim do semestre, que se encerra em junho. Entre as que já tomaram decisões mais sólidas, a Universidade de Cambridge, no Reino Unido, definiu que não terá aulas que concentrem grande número de alunos até o verão de 2021.
Transporte
Em Milão, na Itália, a exemplo de São Paulo, o transporte público não parou durante a quarentena. Depois do lockdown, os italianos estão voltando à vida normal e por lá o uso dos modais em duas rodas vem sendo incentivado pelo governo. “Temos um bônus de 500 euros (cerca de 2 900 reais) para ser usado na compra de bicicleta ou patinete”, afirma o arquiteto brasileiro Rafael Pitoscia, 35, cinco deles morando no país europeu. “Muitas das faixas de rolamento dos carros estão sendo indicadas para as bicicletas. Milão é uma enorme cidade plana, como não pensaram nisso antes?”, pergunta. Londres, Berlim e Barcelona também estão seguindo na mesma direção. Por aqui, nosso desafio será a maneira como o transporte público de massa passará a ser utilizado pela população. “Devido aos riscos de contágio, as pessoas vão fugir de ônibus cheios, o que criará problema de caixa para a prefeitura”, diz o consultor de transportes Sérgio Ejzenberg.
Essa nova realidade deve impulsionar as inovações. Uma das apostas é o chamado “bus on demand”, uma mistura de ônibus e Uber que já funciona em cidades como Goiânia e Fortaleza. Nesse formato, os usuários avisam antecipadamente, por aplicativo, as linhas que vão tomar. “As empresas têm margens de lucro baixas. Com a queda de demanda nos próximos meses, precisarão se reinventar”, afirma Ciro Biderman, professor da FGV e ex-chefe de gabinete da SPTrans. Nos aplicativos de transporte, o foco está na higiene de carros e motoristas. A Cabify, por exemplo, foi a primeira a implementar uma película de isolamento entre condutor e passageiro. Na 99, nenhum motorista poderá rodar sem máscara. Para isso, a empresa está desenvolvendo um software de reconhecimento facial.
Igrejas
Para dizer “amém”, toque a buzina e pisque os faróis. É o que fiéis em 300 carros fazem na Pensilvânia, nos Estados Unidos. O conselho de igrejas reuniu congregações em um drive-in de teatro para ouvir o pastor proclamar sermões em um elevador aéreo. Enquanto quem está em casa assiste à cerimônia pelo Facebook, os presentes ouvem pelo rádio hinos gravados, sintonizados em uma estação local. Em outra igreja, católica, o fiel recebe a comunhão na língua apenas se insistir muito. O padre, usando máscara e luvas, entrega a hóstia pré-embalada nas mãos dos que acompanham a missa sentados dentro de carros no estacionamento de um shopping center.
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Publicado em VEJA SÃO PAULO de 3 de junho de 2020, edição nº 2689.
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