Uma menininha perde sua irmã e melhor amiga, mas não consegue chorar essa ausência dilacerante. As lágrimas lhe nascem no coração, mas não chegam aos seus olhos, pois ela tem um nó (literal) na garganta, que trava tudo. “Atrás do mundo”, espetáculo infantil em cartaz do Teatro XP Investimentos, trata de morte, solidão, ressignificação, medicalização excessiva… Seriam assuntos para crianças? A atual produção autoral brasileira para os pequenos nos indica que sim.
Para além das versões de clássicos dos Irmãos Grimm e de montagens edulcoradas egressas da Disney, que ocupam os palcos de shopping, uma alentada safra de peças tem obtido belos resultados ao apresentar a este público temas supostamente espinhosos e demasiadamente adultos. São montagens que se enquadrariam na categoria “teatro para toda a família” (sem conotação moralista), mas que não costumam ser as primeiras opções dos pais. Ávidos por distrações fugazes, muitos preferem personagens facilmente identificáveis pelos filhos.
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— Os pais têm mesmo dificuldade de falar com os filhos sobre temas como a morte. Num tempo de urgências, em que as pessoas estão com o HD lotado, é comum pensar “quanto menos demanda psíquica, melhor”. Se puder mandar a babá com a criança na peça do shopping, manda — avalia Maria Eduarda de Carvalho, autora e protagonista de “Atrás do mundo”, que partiu de uma premissa comum a estes realizadores: não existe assunto tabu para o teatro infantil, desde que o tratamento dado seja adequado e haja pertinência.
A atriz usou sua experiência pessoal na dramaturgia: a irmã morreu quando sua filha era recém-nascida, e mais tarde precisou falar dela à menina.
Ajuda à avó doente
“Ana Fumaça Maria Memória”, que chega ao Oi Futuro Flamengo em três semanas, tem como personagens uma avó de memória falha por sofrer de Alzheimer, e que acaba de ficar viúva, e o neto, que a socorre desenhando as lembranças que guarda do avô. Todo falado num dialeto inventado, “Pelos quatro cantos do mundo” se concentra numa pequena refugiada árabe, que se perde do pai na fuga dos dois para o Brasil. A peça, em que lirismo e força política voam juntos, retorna em breve a palcos do sistema Sesc, vinda de bem-sucedida temporada no ano passado.
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Breno Sanches, autor, diretor e um dos atores, conta que a equipe ouviu de adultos, finda a peça: “Nunca imaginei que teatro infantil pudesse ser assim”.
— Criamos o espetáculo num momento em que as imagens dos refugiados sírios, incluindo crianças, eram muito fortes — conta ele. — Na peça, a garotinha Aisha se perde do pai na hora da travessia pelo mar, por causa de um bombardeio. Chegamos a achar que isso poderia ser pesado demais, mas buscamos elementos para dar leveza às cenas, como o balão em que ela passa a viajar, as bexigas coloridas que o puxam e o pássaro que o conduz.
“Malala — A menina que queria ir pra escola”, na estrada pelo Brasil depois de longamente aplaudida no Rio, é outra montagem que traz às crianças os temas do desterro e da violência, apresentados de forma inteligente. Agora no Teatro Clara Nunes, “Tropicalinha”, por sua vez, é um musical sobre a experiência de Caetano Veloso e Gilberto Gil durante a ditadura militar, passando pela prisão e pela ditadura, com a música a conduzir os afetos. Também segue trajetória de sucesso “O pequeno príncipe preto”, monólogo que toca na ferida do racismo e ressalta a importância da representatividade.
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Ciúme para ciumentos
Tendo como mote a mercantilização da arte, em tempos de esvaziamento cultural, “Vamos comprar um poeta?” está estreando no CCBB de São Paulo (para o Rio vem em outubro). É o terceiro espetáculo de uma trilogia infantil de êxito, iniciada em 2012 com “A gaiola”, sobre amor e liberdade, e “Contos partidos de amor”, sobre ciúme e dependência emocional.
— Por que não falar de ciúme para criança, se criança é tão ciumenta? A história de “Vamos comprar um poeta?” se passa numa cidade em que só se pensa em dinheiro, as pessoas não têm nome, são números — conta o produtor, Bruno Mariozz. — Estamos aos poucos desconstruindo esse conceito de “pecinha teatral”, muito graças ao fomento público à produção autoral. O teatro comercial tem seu espaço. Mas se você só leva a criança para ver “Frozen” e “Patati Patatá”, como se constroem o diálogo e a troca?