RIO – Reconhecida como patrimônio cultural imaterial da cidade, a Via Sacra da Rocinha fez sua 27ª apresentação na noite desta sexta-feira, no Largo do Boiadeiro, parte baixa da comunidade. Sem nenhum patrocínio, o espetáculo é produzido pela Companhia de Teatro Roça Caça Cultura e sempre aborda temas atuais, que buscam levar reflexões ao público.
Em 2019, o tema escolhido foi “a força do povo”, para exaltar a força e a resistência de quem reside na favela. Protagonizada pelos próprios moradores, que se dividem nas funções de produção, elenco e direção, a Via Sacra tem como forte característica a ocupação das ruas da favela, que servem de cenário para contextualizar a vida, a paixão e a morte de Jesus Cristo.
Para o diretor-geral e artístico, Robson Melo, de 35 anos, que integra a equipe há mais de uma década, a falta de apoio para que o evento aconteça demonstra indiferença do poder público.
— Embora a Via Sacra seja patrimônio cultural e imaterial do Rio, e integre o calendário oficial de cultura da cidade, o descaso é imenso. Levamos milhares de pessoas às ruas em cada edição, e mesmo assim, passamos invisíveis aos olhos de nossos governantes. Nesses 27 anos de história, o espetáculo teve apoio financeiro umas duas vezes. Esse ano chegamos no ponto de não ter nenhuma ajuda. Não teremos palco, luz e som, o mínimo para realizar o evento — criticou Robson.
Apesar da escassez de recursos, porém, Robson ressalta que não falta sentimento para atingir um único objetivo: emocionar os moradores.
— A montagem desse ano será feita com amor, no peito e na garganta. Não temos nada, mas iremos fazer a nossa parte. Minha expectativa é sempre positiva, ter a rua cheia e conseguir tocar os corações de todos — afirmou.
De acordo com a organização, os próprios vizinhos se uniram para que nada inviabilizasse a festa. Minutos antes da montagem começar, a peça recebeu um palco de madeira e outras doações de moradores.
No espetáculo, os trinta atores fizeram uma relação entre a morte de Jesus e as mortes de inocentes em favelas, além de reproduzir áudios narrando casos de feminicídio e representações dos poderes que atuam nas comunidades.
Stella de Paula, de 27 anos, participa da Via Sacra há 13 anos e nesta edição interpretou Caifás. Ela conta que encarnar uma autoridade foi uma experiência marcante, principalmente por ser mulher.
– Na história, Caifás é uma figura de poder. E para mim, sendo mulher, é importante fazer essa representação. Além disso, nosso texto é bem político e, a partir daí, consigo passar através da arte a minha visão e crítica aos nossos governantes. — disse Stella.
A jovem ressaltou a importância do evento para a Rocinha, lembrando que a comunidade sofre com a falta de recursos básicos como saúde, educação e saneamento.
– Faço teatro desde os 11 anos e a arte me salvou. Então, a Via Sacra se tornou parte de mim. Eu não consigo deixar fazer, mesmo com todas as dificuldades. Vontade e amor não nos faltam, e a favela precisa disso. Já sofremos com a falta de tanta coisa, então um pouco de arte é fundamental — avaliou.
Não há dificuldade que reduza a expectativa dos moradores, que sempre marcam presença. Esse é um dos motivos que mantêm a vendedora Silvia Souto, de 45 anos, a continuar atuando no espetáculo desde a primeira edição, em1992.
— Eu participei da primeira Via Sacra. Continuei uns anos e dei uma pausa, mas não consegui ficar muito tempo sem fazer. Amo fazer teatro e a Via Sacra é minha paixão, e ver a multidão todo ano esperando é gratificante. Ver que eles vivem a Via Sacra com a gente é uma emoção única — disse.
*Estagiária sob a supervisão de Leila Yousseff.