Pelo menos não choveu naquela madrugada de quarta-feira (30), data em que os termômetros da Praça da Sé bateram nos 4 graus graças aos ventos frios que derrubaram a sensação térmica da medição oficial da cidade, em torno de 6 graus. Tivesse caído um pouco de água do céu, a barraca de lona surrada, com um furo na parte superior, talvez não teria dado conta de proteger o desempregado Paulo Santos, 49, sua esposa, Elisabete, 38, e a pequena Pabla, 5.
Não é por falta de um teto concreto que o trio está há dois meses ininterruptos sujeito a todas as intempéries do outono e do inverno paulistanos. Paulo paga 600 reais de aluguel em uma casa em Carapicuíba, mas a falta de emprego, de donativos e de perspectivas o levou a buscar alternativas extremas.
“As doações não chegam por lá e precisamos nos virar para não passar fome. Quando a gente consegue alguma cesta básica, até volta pra casa, mas faz tempo que não vamos”, diz o homem, que anda de muletas por causa de um acidente de moto e hoje faz bicos como mecânico de bicicletas.
Perto dali, com uma família muito maior, a desempregada Grace Kelly, 39, e seus cinco filhos também escolheram a região para passar dias e algumas noites. “Aqui consigo uma alimentação para as crianças”, explica ela, que leva os pequenos de ônibus, do Capão Redondo, na Zona Sul, para conseguir marmitas, roupas e cestas básicas.
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São Paulo tem oficialmente 24 344 pessoas vivendo nas ruas, das quais 60% estão localizadas no centro da cidade. Os números, de 2019, são pré-pandemia e apontavam até então para um público majoritariamente masculino (85%), cuja metade foi parar nas calçadas e sarjetas por conflitos familiares e separações conjugais.
Após o início da crise econômica desencadeada pelo coronavírus, em março de 2020, famílias inteiras, como a de Paulo e Grace, ajudaram a mudar o perfil da população sem-teto do centro da capital. “A população aumentou mais de 50% em pouco mais de um ano”, calcula o presidente do Movimento Estadual da População em Situação de Rua de São Paulo, Robson Mendonça, 67. A entidade, que existe desde 2000, distribui de domingo a domingo 750 marmitas na Rua José Bonifácio e ajuda moradores que perderam seus documentos, com doações de roupas para adultos e crianças.
Além das famílias itinerantes que optam pelo centro para conseguir alguma doação, a região também é escolhida por pais, mães e (quase sempre) muitos filhos que não têm para onde ir. Depois que seu barraco pegou fogo, em maio, na comunidade Zaki Narchi, em Santana, a desempregada Priscila Cristiano, 38, que vive com o marido, três filhos e outras duas dúzias de “vizinhos” no Túnel São João Paulo II, próximo do metrô Anhangabaú, não teve condição de se mudar para nenhum outro lugar que não fosse a rua.
“Sem emprego, não tive como construir outro barraco. O frio está difícil, nossas crianças vivem gripadas. Durante a noite dormimos todos juntos, com oito cobertas”, relata ela, que chegou a viver nas ruas de Santana, mas prefere o centro. “Tem mais movimento e a gente se sente um pouco mais seguro.”
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Principais equipamentos municipais voltados aos moradores em situação de vulnerabilidade, os abrigos, a maioria na região central, são objeto de críticas e de debates contínuos. Atualmente, existem 24 000 vagas na capital, das quais 1 500 estão ociosas.
“Essa resposta se esgotou, a população de rua é heterogênea e a resposta dada é sempre a mesma”, diz o padre Julio Lancellotti, 72, da Pastoral do Povo de Rua. “A pessoa vive sob tutela, com hora para sair, comer, levantar e usando um vaso sanitário que outros quarenta utilizam”, afirma.
Pelo lado da prefeitura, a justificativa é que os modelos foram criados para quem precisava dos serviços. “Nossos abrigos sempre foram pensados para homens sozinhos, e desde o fim do ano passado criamos um local com 260 vagas para famílias. Mas há muitos casos em que vamos conversar com as pessoas e elas não querem ajuda”, afirma a secretária municipal de Assistência Social, Berenice Giannella, que na última semana abriu mais um local, com 120 vagas, em que podem viver homens, mulheres e crianças.
Nas próximas semanas, um espaço com sessenta lugares será inaugurado, em Santana, para homens trans. “Nesses novos abrigos, não há tempo máximo de permanência. O intuito é tentar dar autonomia para as pessoas saírem o mais rápido possível das ruas. Assistência social não é moradia, por isso temos psicólogos e oferecemos cursos para a família se reestruturar.” Até o fim da gestão, a prefeitura promete implantar 24 novos serviços de atendimento e limitar a 200 o número de vagas em cada um dos espaços.
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Em outra solução paliativa, a prefeitura também possui um programa de pagamento de passagem para quem quiser voltar para a sua cidade natal. Instituída na gestão de Gilberto Kassab, a medida resultou em 566 viagens no ano passado.
“Vamos aumentar as ofertas de passagens, tantas quantas forem necessárias”, afirma o prefeito Ricardo Nunes. Para estimular os assistentes sociais a convencer as pessoas que desejarem retornar a suas cidades de origem, Nunes quer conceder um bônus em dinheiro aos profissionais. O valor ainda não foi definido.
“O modelo atual é muito tímido, burocrático e em geral demora mais de trinta dias para acontecer”, aponta o padre Julio. Sobre a demora, Nunes promete que o novo sistema será eficiente: “Tudo será resolvido em até 48 horas”.
O programa de passagens, além de lento, muitas vezes é desconhecido por quem precisa. Foi o caso do mecânico José Manuel da Silva, 49, que veio da Paraíba para a capital há seis meses. Sem conseguir o esperado trabalho e após desavenças com um irmão, foi parar na rua justamente na semana que marcou o início do inverno.
“Eu estava só com uma blusa fininha, me encostei na parede de um supermercado, tentando escapar do vento, mas ele ficava mudando de direção. Eu pensei que fosse morrer, a noite parecia não ter fim”, diz ele, que dormia na Praça da Liberdade até juntar dinheiro recolhendo latinhas e comprar uma passagem de volta, na segunda-feira (5).
Enquanto Nunes promete melhorar as políticas públicas para os moradores de rua, reclamações de truculência e recolha de materiais e objetos pessoais são rotineiras. Desempregado desde o ano passado, Gilvan Araújo Silva, 28, vive com a esposa, Sheila, 32, em um viaduto na Rua Conselheiro Furtado, na Liberdade, em uma barraca feita de plástico e madeira.
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“O pessoal da prefeitura passou, fez a limpa no sábado (3) e levou um saco que tinha o meu RG, certidão de nascimento e cobertas”, relata ele, que trabalha com instalações elétricas e entrega diariamente currículos em canteiros de obras pela cidade, enquanto recolhe material reciclável.
Nos registros históricos de relação da prefeitura com os moradores de rua, há diversos casos que ganharam os noticiários. Em 2017, a Subprefeitura da Sé, durante um trabalho de limpeza no Viaduto Júlio de Mesquita Filho, no centro, retirou pertences de oitenta pessoas que viviam ali, o que ocasionou um tumulto e um incêndio.
O Ministério Público entrou com uma ação de improbidade administrativa contra o então subprefeito, Eduardo Odloak, acusado de violar os direitos humanos e os princípios da administração pública. No último dia 2 de julho, a Justiça julgou a ação improcedente e deu ganho de causa a Odloak (veja no fim da matéria mais casos polêmicos das últimas décadas).
Enquanto os moradores de rua se multiplicam, o crescimento da vulnerabilidade foi acompanhado por picos de empatia. O Projeto Life, que atua no centro e em favelas, tem mais de 100 voluntários. “Começamos com 300 marmitas e hoje dobramos nossa capacidade, mas as doações estão cada vez mais escassas”, afirma o coordenador Fernando da Silva, 43. “Nos supermercados parceiros, os carrinhos que ficam parados para receber donativos de clientes não chegam mais nem à metade. Muitas vezes é o gerente que coloca alguma coisa lá para fazer número e atingir meta.”
Na mesma pegada, um grupo de amigos criou a entidade Somos DaRua, em agosto de 2020, que entrega cerca de 1 500 peças de roupas para pessoas em situação de vulnerabilidade por mês. “Comecei a sair com o meu marido, fui divulgando e, quando vi, tinha trinta pessoas na minha porta aparecendo com doações e só foi aumentando”, explica uma das coordenadoras, Karina Kanazawa, 47.
Neste ano, a ONG SP Invisível, fundada em 2014, conseguiu 1 milhão de reais em doações para comprar 11 000 kits com agasalhos e itens de higiene. O material está sendo entregue, assim como milhares de marmitas, cestas básicas e carinho de dezenas de outros movimentos. Mas a crise sanitária e econômica sem precedente faz com que ações importantes como essas sejam incapazes de zerar a fila da fome na maior e mais rica cidade da América Latina.
LINHA DO TEMPO – A relação das gestões públicas com os moradores de rua
1994 – Gestão Paulo Maluf retira das ruas 120 moradores de rua, que acusaram a prefeitura de queimar colchões e jogar água neles
2005 – Governo José Serra instala rampas “antimendigos” embaixo de viadutos na região da Avenida Paulista. Argumento foi de que iniciativa visava à segurança pública
2012 – Gilberto Kassab criou portaria para restringir a distribuição de sopas, mas a medida foi cancelada logo depois
2016 – Fernando Haddad disse que proibiu a recolha de materiais e objetos de moradores sem-teto, mas que havia orientação para não “deixar favelizar praças públicas”
2017 – Moradores de rua da Sé disseram que foram acordados pela gestão de João Doria com jatos de água, o que foi negado pelo então prefeito
PARA AJUDAR A POPULAÇÃO DE RUA
- Paróquia São Miguel Arcanjo (Padre Julio Lancellotti) – https://www.oarcanjo.net/
- Projeto Life @projetosocial.life
- Somos DaRua @somos_darua
- SP Invisível @spinvisivel
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Publicado em VEJA São Paulo de 14 de julho de 2021, edição nº 2746
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