São Paulo — A falta de repasses das prefeituras, aliada à defasagem na tabela do Sistema Único de Saúde (SUS), ameaça o atendimento à população em Santas Casas e hospitais beneficentes do interior de São Paulo.
Algumas instituições já falam em fechar as portas e suspender o atendimento para não incorrer em omissão de socorro. A maioria da clientela é atendida pelo SUS. As prefeituras alegam que foram afetadas pela crise econômica e cobram mais apoio de outras esferas de governo.
Em muitas cidades, a Santa Casa é o único hospital. É o caso de Louveira, de 44 mil habitantes, onde a Santa Casa de Misericórdia sofreu um corte nos repasses da prefeitura e trabalha com um déficit mensal de R$ 250 mil. O provedor Luiz Antonio dos Santos já admite o risco de fechar. “O quadro é lamentável. Não estamos conseguindo fazer a provisão de férias e 13º dos funcionários. Tem funcionário que quer ir embora, mas não temos como pagar a rescisão”, disse.
Conforme o provedor, alegando a situação financeira difícil, a prefeitura reduziu no final do ano passado a subvenção de R$ 2,2 milhões para R$ 1,7 milhão. Antes, o valor chegava a R$ 2,5 milhões.
“As reservas que tínhamos foram consumidas e hoje não temos condições de nos manter. Expusemos a situação à prefeitura, com planilhas detalhadas na mão, pedindo uma repactuação, mas não conseguimos convencer. Oficiamos aos vereadores e ao Judiciário. Mandamos cartas aos deputados pedindo ajuda, ainda sem resultado.”
Em junho do ano passado, a prefeitura decretou intervenção no hospital e demitiu a equipe administrativa, indicando outras pessoas para os cargos. A irmandade mantenedora recorreu e, três semanas depois, a Justiça revogou o decreto, restabelecendo a gestão anterior.
Torcida
O mecânico de lubrificação Silas de Oliveira, de 57 anos, procurou a Santa Casa com fortes dores na região da bacia e, depois de passar pelo raio X no dia 10, retornou no dia 12 para fazer uma ressonância. Ele foi diagnosticado com inflamação no nervo ciático.
“O bom é que resolvo tudo aqui, não preciso ficar indo de hospital em hospital, já saio medicado. Estou na torcida para que a prefeitura veja a importância desse hospital para nós.” Ele é atendido pelo SUS.
O gráfico Antonio Alves da Silva, de 36 anos, ficou inconformado ao saber que a Santa Casa corre risco de parar o atendimento por falta de verbas. Ele conta que passou por atendimento há seis anos e voltou no início do mês, acompanhando o cunhado que teve um acidente de moto. “Não era grave, mas ele foi muito bem atendido. A saúde no Brasil já não é aquela coisa, se cortar investimento, como o pobre vai fazer?”
Com dificuldade para manter o repasse de recursos ao hospital, a prefeitura de Santa Fé do Sul quer devolver a gestão da Santa Casa de Misericórdia ao governo do Estado. O motivo alegado é a falta de condição econômica para fazer frente às demandas do hospital, o único da cidade de 31 mil habitantes. O município assumiu a Santa Casa em 2014. Antes, a gestão era do Estado. A pasta estadual da Saúde informou que o pedido está sendo objeto de análise.
No último dia 1º, cerca de 20 médicos que integram o corpo clínico do hospital entraram em greve, por causa do atraso no pagamento dos salários referentes ao mês de setembro. Notificada a direção do hospital alegou não ter recebido da prefeitura o repasse de R$ 180 mil previsto em contrato. A paralisação dos médicos plantonistas atingiu pacientes do SUS e de convênios. A greve foi suspensa no dia 4, quando a prefeitura depositou parte do dinheiro.
Em três dias de paralisação, cerca de 200 atendimentos deixaram de ser feitos e um paciente morreu. O idoso Arlindo Aparecido Philharmi, de 80 anos, sofreu uma queda, fraturou o fêmur e teve de esperar 20 horas pela transferência para a Santa Casa, em função da greve dos médicos.
Segundo a família, que registrou boletim de ocorrência por omissão de socorro, a demora agravou o estado de saúde e resultou em óbito. A morte do paciente é investigada pela Polícia Civil. A administração do hospital também apura o ocorrido.
Em Herculândia, cidade de 9,3 mil habitantes, o Hospital Beneficente São José sofre com atrasos e defasagem nas verbas repassadas pelo município. O repasse é de R$ 47 mil mensais e deveria ter sido depositado há um mês, mas esse ainda não é o maior problema, segundo a diretora, Irmã Diva Alves dos Santos.
“O valor é insuficiente para o volume de atendimento que prestamos a uma média de 3 mil pacientes por mês. O ideal seriam R$ 80 mil mensais”, disse. O hospital é referência regional em oftalmologia, atendendo pelo SUS pacientes de 60 municípios. “São cerca de 1.500 atendimentos por mês, inclusive cirurgias, mas o valor repassado pelo SUS não é reajustado há 14 anos.”
O hospital aderiu ao programa Santas Casas Sustentáveis, do governo estadual, mas ainda não conseguiu finalizar o processo que garantiria reajuste nos repasses. “Temos 32 leitos e, embora o hospital seja bem equipado e tenha laboratório e raio x, ainda não temos UTI.”
A Santa Casa de Cerqueira César, no sudoeste paulista, suspendeu parcialmente o atendimento no último dia 8, alegando atraso superior a R$ 500 mil nos repasses da prefeitura. Em comunicado, o hospital informou que apenas os casos graves seriam atendidos, recomendando que os pacientes que não sejam casos emergência procurem as unidades municipais de saúde.
Depois de uma reunião com a prefeitura no dia 11, a Santa Casa retomou o pronto-atendimento, restrito a urgências e emergências. Em nota, informou que o fim da paralisação é condicionado ao cumprimento do compromisso da prefeitura de pagar os atrasados até o dia 25.
“Situação grave”
Santas Casas de cidades maiores não escapam à crise. Em Sorocaba com 671 mil habitantes, o gestor da Santa Casa de Misericórdia, padre Flávio Junior, divulgou no último dia 7 uma nota à imprensa alertando para a situação “crítica” e “grave” do hospital, um dos maiores da cidade. Segundo ele, os repasses vencidos e não feitos pela prefeitura já passam de R$ 5 milhões. Estamos com alguns fornecedores em atraso e sem caixa para realizar o pagamento dos nossos funcionários”, disse.
O padre relata ter cumprido seu papel de alertar tanto a prefeitura como a Câmara sobre a gravidade da situação. Segundo ele, a prefeita Jaqueline Coutinho (PDT) o ouviu com atenção, mas alegou ter herdado a prefeitura com um “buraco” orçamentário.
“Agora é hora de colocarmos de lado as questões pessoais e políticas e pensarmos na população para que não cheguemos ao ponto de ficarmos sem o atendimento hospitalar adequado”, alertou.
O presidente da Federação das Santas Casas e Hospitais Beneficentes do Estado de São Paulo (Fehosp), Edson Rogatti, disse que uma parte “expressiva” das Santas Casas paulistas passa por dificuldades financeiras.
“Em muitas cidades, a Santa Casa é o único hospital e, se o prefeito não é parceiro ou a direção não é simpática a ele, o hospital acaba sofrendo. Era necessária maior comprometimento dos municípios que usam os serviços”, disse.
Rogatti reconhece que muitas prefeituras também enfrentam dificuldades financeiras decorrentes da crise econômica.
A defasagem na tabela do SUS, que não é reajustada há 15 anos, segundo ele, deixou os hospitais endividados e dificulta a obtenção de crédito. Ele conta que, de 400 Santas Casas existentes no Estado, apenas 68 conseguiram se cadastrar no programa Santas Casas Sustentáveis. Criado em 2016, o programa classifica os hospitais em três categorias, aumentando os repasses do SUS conforme a estrutura disponível.
Para os hospitais estruturantes – aqueles que prestam atendimentos complexos -, o repasse é 70% superior ao pago pelo SUS. Já os estratégicos, de médio porte, podem obter 40% mais e os hospitais pequenos, de apoio, com mais 10%. “Estamos tentando aumentar a abrangência, mas a preocupação é que o governo não tenha recursos para todos”, disse Rogatti.
No dia 18 deste mês, a Fehosp realiza o 2º Fórum Somos Sustentáveis para discutir, entre outros temas, a gestão e os programas de apoio a esses hospitais.
Respostas
Em nota, a prefeitura de Louveira informou que os repasses pelos serviços da Santa Casa eram de R$ 2 milhões e foram reduzidos para R$ 1,7 milhão por acordo entre as partes. “Não temos como socorrer a entidade sem nos apresentar de forma detalhada onde foi gasto o (valor) excedente ao plano de trabalho, e se tais gastos foram no atendimento dos nossos munícipes, pois o recurso gasto pela prefeitura tem que ser comprovado, posto que trata-se de dinheiro público, sujeito a prestação de contas para o Tribunal de Contas, Conselho de Saúde, Legislativo e Promotoria” diz a nota. “Uma vez demonstradas a procedência e legalidade do pleito, a prefeitura vai empenhar esforços para aportar recursos para a entidade”, acrescenta.
O provedor lembrou que a Santa Casa não é empresa com fins lucrativos e ele próprio trabalha como voluntário há 19 anos.
“Assumi a provedoria por não ter quem quisesse assumir. Todos da irmandade são voluntários, ninguém recebe nenhum tostão. Recorremos à prefeitura porque é nosso maior tomador de serviços. Quem chega à nossa porta é atendido”, disse.
A prefeitura de Santa Fé do Sul informou que, em outubro, repassou cerca de R$ 550 mil à Santa Casa, referentes à compra de serviços, internações e emendas parlamentares. Parte dos recursos foi liberada pelo governo federal. Esse valor não inclui a subvenção direta do orçamento municipal, de R$ 180 mil. Conforme a prefeitura, o repasse era de R$ 150 mil no início do ano e foi reajustado.
“A municipalidade pagou R$ 100 mil no dia 1º de novembro e complementará o valor no dia 20”, informou a assessoria de imprensa.
Segundo a prefeitura, a cidade é uma das poucas da região que oferece suporte à Santa Casa, mas o custo financeiro é “pesado” para os cofres municipais. Conforme o município, os governos estadual e federal também precisam dar suporte ao atendimento na saúde. O hospital tem 79 leitos para internações e sete em unidade de tratamento intensivo (UTI). O provedor, José Biscassi disse que a Santa Casa trabalha com déficit “como a maioria dos hospitais filantrópicos”.
A prefeitura de Herculândia informou que vai depositar o atrasado devido ao hospital São José e que ainda não houve pedido de reajuste nos repasses.
Já a prefeitura de Cerqueira César informou que repassou R$ 130 mil à Santa Casa e deve repassar outros R$ 200 mil até o dia 20, referentes ao custeio do pronto atendimento. O município ainda deve R$ 300 mil relativos aos meses de agosto e setembro, mas trabalha para sanar o problema de ordem financeira que prejudica o hospital.
A prefeitura de Sorocaba informou que a prefeita Jaqueline reuniu-se com o presidente do conselho de administração da Santa Casa, Padre Flávio, para tratar dos repasses atrasados e já depositou R$ 1,9 milhão na conta do hospital. Outro depósito em valor igual foi feito na terça-feira, mas ainda resta um débito de R$ 1 milhão, segundo a Santa Casa.
“O objetivo do encontro foi o de garantir a não interrupção do atendimento para que a população continue sendo bem assistida pelo hospital”, disse a prefeita, em nota.
Sobre a crise nas Santas Casas e hospitais filantrópicos, o Ministério da Saúde informou que está em dia com os repasses de custeio para esses hospitais, incluindo as instituições de municípios do interior paulista. Em 2018, foram destinados R$ 23 6 bilhões para os hospitais privados sem fins lucrativos, incluindo custeio dos atendimentos ambulatoriais e internações, além de incentivos e melhorias na estrutura.
“A pasta transfere mensalmente recursos às secretarias estaduais e municipais para custeio, incentivo e qualificação dos serviços contratados pelos gestores, a quem compete a distribuição da verba dentro da sua rede de saúde.”
Conforme o ministério, a concessão do Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social na Área de Saúde (Cebas) a essas instituições garante benefícios como isenção fiscal, menos burocracia, emendas parlamentares, expansão da infraestrutura e aquisição de equipamentos. Das 2.147 Santas Casas e entidades filantrópicas do País, 1.898 (92,6%) possuem o certificado.
O ministério informou ter criado uma área específica para dar suporte a esses hospitais. Em parceria com o Ministério da Economia, foram criados programas com linhas de crédito para o setor hospitalar filantrópico. O BNDES Saúde prevê a liberação de R$ 1 bilhão para as entidades, enquanto o FGTS Saúde vai liberar R$ 3,5 bilhões até o fim de 2022.
“Essas linhas irão contribuir para melhorar o cenário de endividamento do setor e impulsionar sua reestruturação financeira”, disse, em nota. A pasta informou ainda que está investindo em tecnologia da informação para melhorar a gestão e financiamento do SUS.
A Secretaria da Saúde do Estado informou que, somente em 2019, já repassou R$ 537 milhões às Santas Casas e entidades conveniadas ao SUS por meio dos programas Pró Santas Casas e Santas Casas Sustentáveis.
A pasta informou ainda que preza pelo uso correto e racional dos recursos públicos e, por isso, a unidade interessada em aderir ao Sustentáveis precisa estar em conformidade com critérios que envolvem a capacidade de resolubilidade, complexidade, porte e abrangência de seus atendimentos, considerando a representatividade do serviço na assistência regionalizada.
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