O senhor morou 47 anos em cidades como Washington, Roma e Genebra. Voltou para são paulo em 2005. Gosta de morar aqui?
Não só gosto como é uma escolha consciente. Eu poderia ter ficado fora, tenho família na Europa (três filhas na Suíça e na França). Mas aprendi, em uma longa vida no exterior, que você só é feliz no lugar em que se sente parte do povo. Morei por quase catorze anos na Suíça. Em praticamente qualquer quesito, é um país superior ao Brasil. Mas eu não sou suíço, entende? Lá eu não pertenço, fico sobrando. Aqui, participo da vida coletiva.
Como tem passado a quarentena?
Para mim, não é uma mudança tão grande. Eu já tinha um modo de vida monástico. Saía para ir a concertos, ao cinema ou ao trabalho (é diretor e professor da Faap). Estou aproveitando para terminar a leitura de A Divina Comédia, de Dante Alighieri, que eu tinha interrompido no meio, no “Purgatório”. Agora estou no “Paraíso” (risos). Leio em italiano medieval, no original, o que é difícil até para os italianos modernos. É preciso decifrar verso por verso, um processo trabalhoso. Além disso, estamos eu e minha mulher totalmente isolados em casa (Rubens tem 83 anos e a mulher, Marisa Parolari, 82). Praticamente dispensamos o serviço doméstico, a funcionária vem a cada quinze dias. Meu filho Bernardo traz as compras.
Qual a sua memória mais marcante da São Paulo dos anos 40?
Todas as minhas lembranças são paulistanas. Quando eu era menino, era muito pobre, não tinha essa coisa de viajar nas férias. Eu cresci no asfalto, no coração do Brás. Uma das grandes memórias que tenho foi acompanhar o enterro do Monteiro Lobato, aos 11 anos. Tive uma paixão pela literatura cedo, meu pai lia muito, Pirandello, Dostoiévski. Eu me apaixonei pelo Monteiro Lobato. Um dia, li que ele tinha morrido. Era 5 de julho de 1948. O velório foi na Biblioteca Mário de Andrade. Lembro que fomos seguindo o cortejo a pé, uma multidão enorme, até o Cemitério da Consolação. Fazia um frio do cão. A lembrança que eu tenho é que fiquei cansado, porque eram muitos discursos. E eram sobre política, nenhum falava do Sítio do Picapau Amarelo.
“Nossa elite é pouco educada. Senão, você não explicaria o apoio ao Bolsonaro na classe média alta. É uma elite que tem dinheiro, mas é muito ignorante”
Por que escolheu morar em Higienópolis ao voltar para a cidade?
Acho que Higienópolis é o melhor bairro para morar em São Paulo. Há pedaços mais caros, outros mais baratos, não tem um contraste tão forte do ponto de vista social. A desigualdade é a marca do Brasil e de São Paulo. Higienópolis é um dos bairros menos desiguais da cidade. Fico triste de ver a degradação do centro. O centro poderia ser regenerado se o governo usasse os prédios abandonados para abrigar as pessoas que são obrigadas a morar a três horas de distância. Não adianta querer regenerá-lo apenas com museus e salas de concerto se não tiver uma vida diária no lugar.
O senhor foi embaixador nos EUA, entre outras cidades. Como a pandemia vai afetar a relação entre os países?
Não acredito que vá alterar em profundidade a estrutura política e econômica do mundo. Uma pandemia, por mais violenta que seja, dura alguns meses. É um evento de curto prazo. O aquecimento global, nesse sentido, terá um impacto maior. A pandemia não vai mudar a estrutura profunda, o regime capitalista, a relação EUA-China. O que pode fazer é acelerar uma tendência antiglobalização, que já existia antes do vírus.
Como a imagem do Brasil tem sido afetada na pandemia?
O Brasil é visto no mundo como o pior país no enfrentamento da pandemia. Nossa imagem é a pior possível. Quando caiu o ministro Nelson Teich, por exemplo, eu liguei a BBC à noite e a primeira notícia era sobre isso. Já somos vistos como um risco sanitário pelos vizinhos. Um sério problema do isolamento político, sobre o qual se fala pouco, estará na distribuição da vacina. A luta pela vacina vai ser mais cruel e feroz do que a luta por respiradores ou máscaras. Vai levar muito tempo para fabricar doses suficientes para todos os países. Aqueles que participam do financiamento da vacina vão ser os primeiros atendidos. Nós não estamos participando de nenhum esforço nessa direção. Não somos nem convidados, porque nossa atual diplomacia acredita que o vírus é uma conspiração, uma invenção da China. O Brasil corre o risco de ficar no fim da fila da vacina. A luta vai ser feroz.
A elite brasileira ficou mais provinciana nos tempos atuais?
Esse pensamento tem uma certa base na realidade, sim. Estudos do Banco Mundial mostram que a média de escolaridade da elite brasileira é uma das mais baixas do mundo. Uma proporção altíssima entre ela tem apenas dez anos de escolaridade ou menos. Não usaria a palavra provinciana. O que somos é pouco educados mesmo. Se não fosse assim, você não explicaria o apoio ao Bolsonaro na classe média alta. É uma elite que tem dinheiro, mas é muito ignorante.
Como o senhor vê o cenário eleitoral em São Paulo?
Vejo que a coisa não está muito bem definida ainda. O quadro tende a se tornar fragmentado. A decisão do PT de indicar um candidato sem muito apelo popular (Jilmar Tatto) não vai contribuir para a união das esquerdas. Algo parecido aconteceu no Rio de Janeiro, com a saída de Marcelo Freixo do páreo. Tenho ficado bem impressionado com o atual prefeito (Bruno Covas). Não o conheço, mas parece uma pessoa sóbria, objetiva.
O senhor já viveu crises políticas. Como sair desta atual?
Impeachment já. Não tenho problemas em dizer isso com todas as letras. Não pertenço a partidos, voto na Marina Silva. Minha ideologia é a do meio ambiente. Dizem que o momento da pandemia não é propício ao impeachment. Acho exatamente o oposto. Precisamos do impeachment para poder ter uma política efetiva contra a pandemia. E sobram motivos jurídicos para isso.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 27 de maio de 2020, edição nº 2688.
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