Os desafios da Fiat e da Peugeot depois da fusão

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Durante uma entrevista em 2013, o português Carlos Tavares, à época executivo-chefe para operações globais da montadora francesa Renault, revelou sua ambição: tornar-se o comandante de um colosso automobilístico multimarcas do porte da americana General Motors. A declaração virou um “sincericídio”, pois desagradou profundamente ao então presidente mundial da empresa, o brasileiro Carlos Ghosn, e levou à demissão de Tavares da cúpula da companhia francesa. Extremamente competente, Tavares não teve dificuldade para se empregar e assumiu a presidência da concorrente, a também francesa Peugeot Citroën (PSA). Depois de uma trajetória brilhante na empresa, ele finalmente realizou seu sonho na quarta-feira 18: virou presidente do conglomerado originado da fusão do gigante ítalo-americano Fiat Chrysler (FCA) com sua empresa. O resultado é uma megacompanhia que fabrica 8,7 milhões de veículos por ano sob quinze marcas distintas, condição que a torna a quarta maior empresa do ramo no mundo. O ex-chefe Ghosn, que sempre ambicionou comandar um império das quatro rodas formado pela aliança que presidia, a franco-nipônica Renault-Nissan-Mitsubishi, e pela própria FCA, assistiu à glória de Tavares em Tóquio, cidade onde cumpre prisão domiciliar sob a acusação de sonegação de impostos e irregularidades na gestão da marca japonesa Nissan.

Em uma indústria centenária, fabricante de produtos diretamente ligados aos conceitos de beleza, velocidade, paixão, modernidade, riqueza e poder, movimentos como o protagonizado por Tavares ganham contornos épicos. Desde o início do ano, o grupo francês cortejava o ítalo-americano para fundir operações. Entretanto, em maio, o herdeiro e maior acionista da FCA, John Elkann, neto do fundador da Fiat, Gianni Agnelli, encerrou as conversações e passou a cortejar a Renault, já sem Ghosn no comando (ele foi preso em novembro de 2018). As negociações naufragaram, e os italianos voltaram a olhar com interesse para a PSA, até que finalmente acertaram o negócio. O grupo nasce com faturamento de 189 bilhões de dólares e sólido posicionamento no mercado europeu, nos Estados Unidos e na América do Sul. Na Europa, a nova empresa fabrica mais carros por ano que a Volkswagen, domina as vendas na França e na Itália e tem peso significativo na Alemanha, na Espanha e no Reino Unido. Um em cada quatro SUVs feitos no continente sai de suas fábricas, e é a líder absoluta em veículos comerciais leves, com fatia de mercado duas vezes maior que a de seu competidor mais próximo. Nos Estados Unidos, as linhas Dodge, RAM e Jeep garantem forte presença, o que rende à corporação 43% de seu faturamento. E na América do Sul assume a segunda colocação entre as fabricantes de automóveis, atrás apenas da General Motors.

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RIVALIDADE –  Tavares (à esq.) e Ghosn, nos tempos da Renault: “sincericídio” e demissão Vincent Isore/IP3/Getty Images

Tamanho poderio industrial e comercial não significa que gerir a nova companhia será um passeio de conversível. Os grupos Fiat e Peugeot estão bastante atrasados no desenvolvimento de tecnologias limpas de motores elétricos e nas pesquisas para automóveis autônomos. Os gigantes japoneses Toyota e Honda e mesmo o alemão Volkswagen já trilham esse caminho, ainda que não ofereçam nenhum modelo semelhante aos da novata e promissora Tesla, montadora de dezesseis anos nascida no Vale do Silício, na Califórnia, e símbolo da substituição dos motores movidos a derivados do petróleo pelos acionados a eletricidade. Outro desafio da nova empresa é avançar no mercado asiático, principalmente na China, o maior do mundo, onde vende menos de 100 000 unidades, em comparação com os 2 milhões da Volkswagen. “Tanto a Fiat quanto a Peugeot estão muito atrasadas por lá. As operações são pequenas demais para os desafios que as duas companhias têm pela frente”, afirma Luiz Carlos Mendonça de Barros, sócio e presidente da subsidiária brasileira da fabricante chinesa de caminhões Beiqi Foton.

Engenheiro, ex-piloto de provas da Renault e apaixonado por ralis, Tavares terá de mostrar que tem condições de atender aos requisitos que podem transformá-lo em um ícone do setor. Sergio Marchionne (1952-2018), o respeitado executivo contratado em 2004 para recuperar a Fiat e que acabou realizando a fusão com a Chrysler cinco anos depois, foi um deles. Lee Iacocca (1924-2019), salvador da Ford e da Chrysler, foi outro. Carlos Ghosn quase chegou lá, mas acabou abatido antes pela polícia japonesa. O executivo português, aparentemente, é um homem preparado para o posto e que sabe o tamanho da encrenca que vai ter de encarar. “Nós vamos enfrentar o caos nesse setor pelo menos até 2030”, disse recentemente em uma entrevista. “Nem todos os fabricantes sobreviverão ao darwinismo automobilístico da passagem para o motor elétrico ou veículos autônomos.”

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IDAS E VINDAS –  John Elkann, dono da Fiat: quase um ano de negociações Washington Alves/Light Press/.

A estratégia corporativa que passa a vigorar a partir de agora na FCA-PSA, seja para o Cinquecento, a Maserati Ghibli, a picape RAM 2500 ou o Peugeot 5008, será centrada na busca obsessiva por ganho de escala, eficiência e lucratividade. Tavares cunhou uma expressão para definir seu estilo de trabalho: psicótico por performance. Adepto de severos cortes de custo, da revisão contínua de processos e da racionalização radical de linhas de produção, já provou que sabe aplicar bem tal formato. Além de salvar a Peugeot Citroën da falência em 2013, repetiu a façanha com a incorporação bem-sucedida da divisão europeia da GM, a anglo-alemã Opel-­Vauxhall, em 2017. Tavares não liga para luxos, compra seus ternos em lojas baratas e voa, dentro da Europa, em companhias aéreas de baixo custo. Hipercompetitivo, não aceita derrotas nem respostas negativas. É famoso no mundo do automobilismo um episódio recente: durante a disputa de um rali de 24 horas, ele viu seu velho Peugeot 504 Ti de motor envenenado engasgar perto da linha de chegada. Inconformado, saltou do carro, abriu o capô, mexeu no motor e retornou ao volante. Bastou girar a ignição para que o carro voltasse a funcionar e ele concluísse a prova. “Tavares é o executivo mais frugal e obstinado de toda a indústria automobilística mundial”, avalia o analista Max Warburton, da consultoria americana Bernstein Research.

No novo mapa de negócios que está na mesa do português, o Brasil tem lugar de destaque. Com unidades em Minas Gerais e Pernambuco e modelos de sucesso como o Jeep Renegade e a picape Fiat Toro, a Fiat Chrysler vendeu pouco mais de 300 000 automóveis desde janeiro, o que lhe garantiu a terceira posição no ranking nacional entre janeiro e novembro. A Peugeot Citroën, com uma unidade no Rio de Janeiro, por sua vez, há tempos não apresenta um modelo empolgante como o velho 206. Não é surpresa, portanto, sua colocação na décima posição do mesmo ranking, com pouco mais de 37 000 veículos vendidos. Unificadas, as duas derrubam a Volkswagen do segundo posto (a empresa alemã vendeu 315 000 carros até novembro). Ainda sem a pressão de avançar na produção de modelos elétricos por aqui, FCA e PSA poderão aumentar drasticamente seu poder de negociação com fornecedores e a sinergia das redes de concessionárias. Ambas também vão compartilhar peças e plataformas para diversos modelos das marcas, barateando o processo de produção. Quem acha estranha a perspectiva de ter um carro Fiat com peças Peugeot terá de se acostumar ao admirável mundo novo da indústria automobilística.

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Com reportagem de Victor Irajá

Publicado em VEJA de 25 de dezembro de 2019, edição nº 2666



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