1 – Mílicia = Estado
Acreditar que o Estado vai derrotar as milícias é acreditar que o Estado vai enfrentar a si mesmo. A milícia não é um poder paralelo. “A milícia é o Estado”, já afirmou o sociólogo José Cláudio Souza Alves, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ) e que estuda o assunto desde o início da década de 1990.
Entre os milicianos há deputados, vereadores, policiais na ativa, bombeiros e servidores públicos. Ações contra as milícias muitas vezes vazam, como pode ter acontecido na tentativa de prisão do ex-capitão da PM Adriano Magalhães da Nóbrega, em 22 de janeiro passado. Ele está foragido desde então. É suspeito de comandar milícias em Rio das Pedras e outras comunidades da Zona Oeste e de participar do grupo de assassinos conhecido como Escritório do Crime. Sua mãe e sua mulher trabalharam no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro, hoje senador. O político lhe conferiu, em 2005, a Medalha Tiradentes, a mais importante honraria da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.
2 – Milicianos + evangélicos = votos e poder
No Congresso Nacional costumam se unir as bancadas do boi (agronegócio), da bala (indústria de armamentos) e da Bíblia (evangélicos). O agronegócio não é tão forte no Rio – embora o outrora poderoso deputado estadual Jorge Picciani, hoje em prisão domiciliar, fosse proprietário de centenas de cabeças de gado –, mas milicianos e evangélicos têm presença crescente nos Legislativos municipais e no estadual.
Governador e prefeitos não conseguem ter maioria sem negociar com esses grupos. E negociar significa fazer concessões, como favorecer ou fechar os olhos para construções irregulares. Wilson Witzel, desconhecido até as vésperas da eleição de 2018, não se elegeu governador apenas graças ao discurso linha-dura. Teve o apoio de políticos ligados às milícias e às igrejas neopentecostais. Esses grupos também apoiaram a campanha de Jair Bolsonaro à Presidência.
3 – Milícia é pior do que tráfico
Por crença sincera ou má-fé, políticos encamparam a falsa ideia de que milícias enfrentavam o tráfico de drogas para levar segurança às favelas – e não para explorar serviços como os de gás, TV a cabo e transporte alternativo. Quando prefeito, em 2006, Cesar Maia afirmou: “As autodefesas comunitárias são um problema menor, muito menor do que o tráfico”. O professor Souza Alves apontou o contrário em entrevista à Agência Pública: “Ninguém toca nesses caras. Em geral, só estão tocando no tráfico. E tráfico não é o mais poderoso. Milícia é mais poderosa do que o tráfico. Milícia se elege, tráfico não se elege”.
Quase diariamente, traficantes morrem em confrontos com a polícia. Os milicianos, ou parte significativa deles, são a polícia. Suas mortes são raras e podem acontecer em confrontos entre eles mesmos. Traficantes costumam ser negros, de baixa renda e baixa escolarização. Milicianos costumam ser brancos, de classe média e de maior escolarização – este é pré-requisito para os cargos públicos que ocupam ou ocuparam.
Em várias comunidades, milícia e tráfico são sócios.
4 – Morte como negócio
O negócio dos traficantes é vender drogas. Quando esse negócio é prejudicado ou simplesmente por barbarismo, torturam e matam. Mas não fazem isso por encomenda de outros. Para os milicianos, a morte é negócio. Foram treinados, principalmente na polícia, atiram bem e sabem não deixar rastros. Muitos, como Nóbrega e Ronnie Lessa (preso sob acusação de ter matado a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes em 14 de março de 2018), atuaram para bicheiros. Estes, embora mais discretos do que no passado, continuam muito fortes no Rio. Seu modus operandi foi repassado às milícias: representantes na política; corrupção de policiais e outros servidores públicos; execução bem planejada de inimigos, sem que estes possam reagir. O Escritório do Crime não existiria sem o jogo do bicho. A relação entre milicianos e contraventores é umbilical.
5 – Na milícia não existe delator
Quando foi acusado de matar Marielle e Anderson, Orlando de Curicica resolveu se defender atirando. Em depoimento a uma procuradora do Ministério Público Federal, o miliciano afirmou que a cúpula da Polícia Civil recebe dinheiro de bicheiros e, por isso, nenhuma investigação sobre o Escritório do Crime avança. A do caso Marielle levou um ano para ter um grande avanço, mas ainda não se chegou ao mandante.
Orlando se arriscou porque está num presídio de segurança máxima, em Mossoró (RN). No Rio, já teria morrido, provavelmente. Não há delação premiada nesse meio. Queima de arquivo é prática comum. Ronnie Lessa sofreu um atentado um mês após Marielle e Anderson serem assassinados, mas o caso foi registrado como tentativa de assalto. Nadinho de Rio das Pedras, que foi chefe da milícia na comunidade e vereador, aceitou em 2008 depor na CPI das Milícias, da Assembleia Legislativa do Rio. Entregou 11 nomes. Morreu no ano seguinte com dez tiros.
6 – Mão de obra de sobra
As milícias se tornaram temporariamente vulneráveis em 2008. O grupo que controlava a comunidade do Batan, na Zona Oeste, torturou uma repórter, um fotógrafo e um motorista do jornal “O Dia”. Os três estavam morando no local para fazer uma reportagem. Diante da repercussão do caso, o deputado estadual (hoje federal) Marcelo Freixo conseguiu aprovar e presidir uma CPI das Milícias. O relatório final pediu o indiciamento de 225 pessoas. Naquele período e até o início da década seguinte, a Draco (Delegacia de Repressão a Ações Criminosas Organizadas), tendo o delegado Cláudio Ferraz à frente, prendeu mais de 700 envolvidos com milícias.
O ritmo das operações não se manteve o mesmo ao longo dos anos 2010, e constatou-se algo semelhante ao que acontece no tráfico de drogas: a reserva de mão de obra é enorme. Um policial tem um salário baixo para se expor em confrontos e não ganha mais dinheiro com isso. Na milícia, ele pode se expor menos e ganhar mais. Policiais que foram expulsos da corporação têm ainda mais motivos para se assumir como milicianos. Prendê-los é um ofício sem fim.
7 – Terras para ocupar e vender
A Zona Oeste foi a última região do Rio de Janeiro a ser ocupada. E continua sendo. As grandes construtoras predominaram na Barra da Tijuca, mas em áreas como os sub-bairros de Jacarepaguá e o entorno do Itanhangá sobraram terras para as milícias tomarem posse. Muitas áreas verdes foram desmatadas e muitos prédios e casas foram erguidos sem que a Prefeitura fiscalizasse (ou tivesse interesse em fiscalizar).
A grilagem de terras virou um dos principais negócios dos milicianos, ainda garantindo novos currais de votos. Por controlarem os serviços utilizados pelos moradores, as quadrilhas têm todos cadastrados, o que possibilita pressão nos períodos de campanha eleitoral. Para combater essa situação, os governantes precisariam enfrentar deputados, vereadores e mesmo eleitores. Não costuma acontecer.
8 – Tempo de guerra
A violência está na ordem do dia, o que é bom para os milicianos, que a exercem cotidianamente para expandir seus domínios e negócios – contra oponentes ou moradores que não cumprem as regras impostas. O Rio e o Brasil vivem um momento em que a violência é estimulada pelos governantes.
Wilson Witzel defende o “abate” de homens armados mesmo que eles não estejam atacando policiais. Quando 15 pessoas foram mortas numa casa no morro do Fallet, em janeiro, o governador elogiou a polícia sem esperar qualquer investigação. Sobre os disparos de cerca de 80 tiros, feito por militares do Exército em 7 de abril, contra o carro do músico Evaldo Rosa dos Santos, ele disse que não podia fazer “juízo de valor” (já fazendo, portanto), pois não era o “juiz da causa”. O presidente Jair Bolsonaro classificou o caso como “incidente” e emitiu seu juízo: “O Exército não matou ninguém”.
Witzel autorizou que PMs levem suas armas e seus coletes para casa. A decisão pode funcionar como reforço para as milícias, já que parte dos policiais está ligada a elas.
Em janeiro e fevereiro deste ano, as Polícias Civil e Militar mataram 305 pessoas, recorde para o período desde o início da série histórica, há 16 anos. Se aprovado no Congresso, o pacote do ministro da Justiça, Sergio Moro, aumenta a chance de um policial ser absolvido após matar alguém: “O juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. Bolsonaro já facilitou por decreto a posse de armas e, juntamente com a bancada da bala, que mudar a legislação para facilitar o porte.
Os protagonistas da cerimônia medieval que foi a destruição de uma placa em homenagem a Marielle Franco (Witzel, Rodrigo Amorim e Daniel Silveira) tiveram, somados, mais de 4,8 milhões de votos em 2018.
Não é um bom momento para a paz no Rio. É um bom tempo para as milícias.