O fiscal que atrapalha e o fiscal que ajuda

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Há muitas receitas para desmontar um regime democrático. Nestes 100 dias de governo, o banquete bolsonaresco foi tão inusitado e eclético que dificultou a degustação mais atenta dos vários ingredientes desse projeto. A retórica violenta e destemperada, a inépcia gerencial, a paralisia operacional e as pitadas de distração e nonsense foram os dissabores dominantes nesse coquetel. Por baixo dessa camada mais visível espalham-se também fragmentos de um método-padrão de governos liberticidas. Não há improviso.

O método adapta a máxima atribuída a Getulio Vargas, ecoando Maquiavel: “Aos amigos, tudo; aos inimigos, a lei”. Em seu lugar, coloca uma orientação mais didática, a teoria na prática: “Para liberar os amigos e a si mesmo, elimine o fiscal; para perseguir os inimigos, mande o fiscal”. O governo Bolsonaro tem dado fartos exemplos dessa técnica.

Regra 1: elimine o fiscal que atrapalha. O exemplo mais pitoresco está na exoneração, na semana passada, do fiscal do Ibama que multou Bolsonaro por pesca ilegal em 2012. Na ocasião, o então deputado recusou-se a mostrar documentos e abusou de sua autoridade ao ligar para o ministro da Pesca. Foi multado e em sua defesa alegou estar no aeroporto naquela data. Foi desmentido pela fotografia tirada pelo fiscal. Em retaliação, Bolsonaro apresentou projeto de lei que, curiosamente, queria desarmar fiscais do Ibama e do ICMBio. Perdeu. Combater a “indústria da multa” para facilitar a violação da lei entrou para seu repertório de bordões. Foi com base nessa filosofia que ordenou cancelar, dias atrás, a instalação de 8 mil radares nas rodovias federais. O resultado programado são mais mortes nas estradas.

Antes fosse apenas um problema individual de quem não separa o público do privado. O mesmo princípio está na tentativa generalizada de abalar a credibilidade de instituições de controle e de produção de informação e conhecimento empírico: ataques à imprensa (a “fonte de todo mal”); ataques ao IBGE por gerar dados desagradáveis sobre desemprego; não divulgação de pesquisa encomendada à Fiocruz sobre epidemia de drogas, pois os resultados vão de encontro a interesse do governo; restrições à transparência estatal; eliminação da participação social nas políticas públicas (proposta pelo ministro Lorenzoni); substituição do sistema público do Inpe por satélites de empresa americana no monitoramento do desmatamento (sugerida pelo ministro Salles); um projeto “anticrime” que dificulta a investigação da letalidade da polícia que mais mata e mais morre no mundo (da caneta do ministro Moro).

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Regra 2: mande o fiscal que ajuda. A fiscalização persecutória é instrumento do autocrata para drenar a energia de opositores. Desprovido de evidências concretas e com base na presunção de suspeição do inimigo, o governo já anunciou: a instalação da Lava Jato da educação; a suspensão de contratos com organizações da sociedade civil para “auditoria”; a revisão das indenizações a anistiados da ditadura; a suspensão de repasse de recursos da Ancine ao setor audiovisual, inviabilizando abruptamente projetos em curso. O revanchismo malandro, disfarçado de “combate à corrupção” e de “devido processo legal”, produz ineficiência e definha políticas públicas.

Numa das passagens mais citadas na história da ciência política, James Madison, um dos autores intelectuais da Constituição americana, alerta que a grande dificuldade na engenharia de instituições republicanas está em fazer o governo controlar a si próprio. Não basta a bonita invocação do “povo” como origem de todo poder e última fonte da soberania, é necessário que as instituições se controlem e que “a ambição se contraponha à ambição”. Uma intricada teia de instituições que se fiscalizam geraria equilíbrio de forças e viabilizaria um governo subordinado à lei. No jargão jurídico, um estado de direito.

Um governante autoritário não está preocupado em proteger direitos e liberdades de cidadãos, mas em se libertar das amarras jurídicas a seu próprio poder. Por isso não se adapta à fórmula de Madison. Bolsonaro ensina. Resta-nos aprender.

Conrado Hübner Mendes é doutor em Direito e professor da USP



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