Numa Europa destroçada pela Segunda Guerra Mundial, o nome de um general serviu de alcunha para o grande plano econômico de reconstrução do continente. Os aportes astronômicos dos Estados Unidos para investimentos em infraestrutura no Velho Continente entre 1948 e 1952 laureou o general George Carlett Marshall como fiador da retomada da economia europeia com o Plano Marshall, para que o continente não caísse nas mãos da ameaça vermelha vinda da União Soviética. Em meio à pandemia do coronavírus (Covid-19), em terras brasileiras, o plano do governo também passa pela atuação de um general: o ministro da Casa Civil, Walter Braga Netto. Sob coordenação dele, em parceria com o ministro do Desenvolvimento Nacional, Rogério Marinho; Tarcísio Gomes de Freitas, da Infraestrutura; e a anuência de Paulo Guedes, da Economia, o governo desenha um plano de investimentos para a aceleração da economia passado o pico do descalabro na saúde. A fórmula não é nova, e vai contra a filosofia de Guedes: investimento público em infraestrutura. VEJA conheceu o primeiro rascunho do plano: militaresco e intervencionista, com pitadas de ranço político. Parece ter saído diretamente dos anos 1970.
Segundo o desenho da frente formada para cimentar os caminhos pós-crise causada pela Covid-19, uma das formas de retomar o crescimento econômico (ou mitigar os efeitos da epidemia) será o investimento público em obras paradas. Para isso, os ministros desejam contar com pequenas e médias empreiteiras para destravar projetos de infraestrutura, como estradas, viadutos e projetos de saneamento. Assim, contratações de até 1 milhão de trabalhadores podem surgir, segundo os cálculos do Planalto. Na contramão do que sempre defendeu o ministro da Economia, a solução viria do próprio Estado – e de novos parceiros. Vários entraves, porém, colocam o “Plano Braga Netto” em xeque.
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Em detrimento à “Doutrina Guedes” de redução do tamanho do Estado e a busca incessante por investimento privado, a leitura de que a iniciativa privada e investidores estrangeiros não teriam o mínimo de estrutura ou interesse em investir, em curto prazo, em obras no Brasil é correta. Diferentemente da vivenciada durante os anos de gestão de Dilma Rousseff, a atual crise acomete o mundo inteiro. O investimento público é a única alternativa para, passado o momento crítico, o país pensar em mitigar a desaceleração da economia e o desemprego. Acossadas pelo impacto astronômico dos gastos com os desamparados, desempregados e com o Sistema Único de Saúde (SUS), porém, a dúvida é: com que recursos o programa seria viabilizado? A dívida pública passada a pandemia, segundo projeções do próprio Ministério da Economia, pode passar de 90% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro, caso a atividade econômica recue 5% neste ano, como projeta o Banco Mundial. Isso leva em consideração apenas os gastos já anunciados, que, até o momento, são considerados momentâneos – sem gerar sequelas para o futuro. Contudo, um plano amplo de retomada do investimento público geraria um impacto fiscal permanente, comprometendo vários anos subsequentes à crise.
O secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, é o homem dos cálculos dentro do Ministério da Economia. Na ponta do lápis, as mais novas contas do chefe dos cofres envolvem uma iniciativa em conjunto de diversas pastas do governo de Jair Bolsonaro, somando os gastos e mais gastos com o combate à doença e seus impactos econômicos. E – por que não? – também os impactos políticos. Como o presidente vê inimigos até debaixo da cama, as velhas empreiteiras, conhecidas pelos brasileiros pelos escândalos de gestões passadas à luz graças à Lava-Jato, são carta fora do baralho. VEJA apurou que as construtoras enfrentam resistência de membros do governo, pela associação pretérita às gestões petistas e à corrupção. A Odebrecht, por exemplo, enfrenta resistência de instituições vinculadas à União para a aprovação de seu plano de recuperação judicial. Com aversão às “empreiteiras vermelhas”, o programa de investimentos do Governo Federal visaria contar com médias e pequenas construtoras que, graças ao Clube das Empreiteiras, nunca tiveram vez nas grandes licitações.
Outro obstáculo para a viabilidade dos planos do governo é que essas empresas maculadas, por falta de alternativa, são as únicas capazes de resolverem obras de grande magnitude. As pequenas e médias empreiteiras não possuem expertise, nem fôlego financeiro, para se aventurarem na Amazônia ou no Sertão Nordestino. Uma rateada do caixa do governo para sustentar essas obras e uma quebradeira generalizada acontece. Durante o primeiro ano de gestão de Bolsonaro, os ministros Guedes e Tarcísio travaram um embate pelos contratos das empreiteiras. Enquanto Guedes queria rasgar todos os compromissos de empresas que firmaram acordos de leniência, Tarcísio almeja revisar um por um e ver o que poderia ser aproveitado. A preocupação de falta de estrutura colocaria em xeque a operação dessas obras, sem a participação das grandes empresas de infraestrutura do país, como quer Bolsonaro.
Noutra frente, o ministro Paulo Guedes não desistiu de atrair o capital privado para o jogo. Numa transmissão ao vivo realizada pelo banco BTG na segunda-feira 20, o ministro voltou a defender que a recuperação virá pelo investimento privado e apelou ao Congresso pelo “espírito cívico” de se aprovar as reformas estruturantes ao fim do momento crítico enfrentado pelo país. Para além das reformas administrativa (que, de fato, abriria espaço fiscal para que o governo engendrasse novos investimentos e fomentasse a economia) e tributária, Guedes lamentou que o marco legal do saneamento básico não foi aprovado. E ele tem razão. A flexibilização de regras para o investimento em serviços de água e esgoto por parte de empresas pode atrair aportes em contratos a longo prazo e viabilizar grandes obras sem um centavo do Tesouro. “O ministro sabe que, como os projetos são a longo prazo, a atratividade para empresas estrangeiras é muito maior”, diz um secretário do Ministério da Economia.
Por fim, um problema conceitual. Um Plano Marshall dependeria de dinheiro estrangeiro. Como no pós-guerra, os Estados Unidos financiaram a recuperação europeia – ou seja, não foi um plano interno, mas externo. Assim, para fazer sentido este conceito, o dinheiro para a revitalização das obras de infraestrutura precisaria vir do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial ou até mesmo do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). E aí mora o problema fundamental do plano com cheiro de naftalina de Braga Netto. O dinheiro virá obrigatoriamente das máquinas de imprimir instaladas na Casa da Moeda, no Rio de Janeiro. Será o governo financiando o governo num grande calote branco que – principalmente aos olhos dos investidores estrangeiros – acende um sinal de alerta para um problema fiscal e inflacionário futuro. O milagre econômico dos anos 1970, baseado exatamente neste tipo de plano, não sobreviveu à primeira crise internacional. O resultado foi a hiperinflação e um gigantesco problema no balanço de pagamentos do país. Como saída para a crise atual, os militares sugerem exatamente o mesmo projeto. Não há histórico ou teoria econômica que sustente a lógica de implementar um programa como este.
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