Marielle Franco ganha homenagem em novo disco de Jorge Mautner

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RIO — Na noite em que Marielle Franco foi assassinada, Jorge Mautner escreveu, sob o impacto da notícia: “É preciso exterminar/ A doença mental, física e assassina/ Do racismo, do antifeminismo/ E do neonazismo/ (…) Que matou Anderson Gomes/ E que matou Marielle Franco”.

Era o poeta frente ao abismo. Mautner, porém, é dos que reafirmam a todo tempo o aforismo do português Agostinho da Silva: “Não há abismo em que o Brasil caiba”. A frase dá título a seu novo disco, que será lançado na sexta-feira (e que chega ao palco no dia 23, no Theatro Net Rio, em Copacabana).

7527213 Marielle Franco ganha homenagem em novo disco de Jorge Mautner

O álbum abre alas para outras frentes. A partir do fim deste mês, a editora Azougue relança a obra completa de Mautner, “Mitologia do Kaos”, em seis volumes. E, até o fim do ano, a HBO estreia o documentário em quatro partes “Jorge Mautner: Kaos em ação”.

Feito em parceria com a banda Tono (Bem Gil, Rafael Rocha, Bruno Di Lullo e Ana Lomelino), “Não há abismo em que o Brasil caiba” (Gege/ Deck) inclui “Marielle Franco” e outras 13 canções. É o primeiro álbum de inéditas do compositor desde “Revirão” (2006), e traz fincada sua bandeira maior: a fé no amor e na sabedoria do povo brasileiro.

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— O Brasil nunca teve nem lei, nem Estado, nem governo. O que existe são grupos que se ajudam o tempo todo, como os quilombos — diz Mautner. — E a literatura que reflete isso cresce no cordel, nos repentistas, porque para muitos foi negado o fato de saber ler e escrever. Você vê Guimarães Rosa, por exemplo, que recolhe um linguajar no qual já estão Einstein, todas as simultaneidades.

‘Pai de santo quântico’

O olhar de Mautner é um mosaico assim. Geopolítica, astrofísica, mitologia iorubá, psicanálise e cristianismo se sobrepõem sem fronteiras definidas. Como quando ele fala do povo amazônico que vivencia três religiões:

“Foi descoberto recentemente que as pessoas se apaixonam pelo olhar. E o olhar é tão poderoso que se você examinar partículas atômicas, o olhar as deforma. Mas Ismael já sabia disso tudo: ‘Tens um olhar que me consome’”

— Primeiro têm a umbanda, depois vão para um rito indígena e, por fim, andam por três horas no mato até chegar a uma clareira onde, numa igreja de madeira queimada, emulam um latim inventado.

Depois, lamenta que o Brasil não aproveite suas reservas enormes de nióbio e grafeno, “dois minérios sem os quais não há internet, nem foguete, nem celular”. Para, em seguida, ligar Ismael Silva a partículas atômicas:

— Foi descoberto recentemente que as pessoas se apaixonam pelo olhar. E o olhar é tão poderoso que, se você examinar partículas atômicas, o olhar as deforma. Mas Ismael já sabia disso tudo: “Tens um olhar que me consome”, cantarola Mautner, sorrindo.

E volta ao disco…. Dedicado a Nelson Jacobina (parceiro de Mautner, com quem fez clássicos como “Maracatu atômico”, falecido em 2012), “Não há abismo…” nasceu da proximidade do Tono com o compositor. Bem, Bruno e Rafael tocam com ele desde 2013. No último ano, a banda decidiu levar à frente a ideia de organizar um álbum com a produção recente (e incessante) do artista.

O álbum traz parcerias com os integrantes do grupo e outros compositores, como João Paulo Reys. Traz, ainda, músicas que Mautner já tinha prontas — a única não inédita é “Yeshua Ben Joseph”.

“Sempre que rolava alguma dúvida quanto a arranjo, Mautner brincava: ‘Minha música são três acordes, se botar um quarto é pelotão de fuzilamento’ (risos).”

A marca do artista está mesmo quando ele não canta, como em “Veneno” (única na qual toca o famoso violino) ou “O passado”.

Bem Gil explica que a ideia era se basear na simplicidade musical de Mautner, em sua economia de elementos (a referência central foi “Pra iluminar a cidade”, seu primeiro disco, de 1972):

— Sempre que rolava alguma dúvida quanto a arranjo, Mautner brincava: “Minha música são três acordes, se botar um quarto é pelotão de fuzilamento”
(risos)
. Às vezes pegava o violão e mostrava. Acabou que “Destino” ficou apenas voz e violão, talvez o único caso assim em toda a sua discografia.

Mautner ouve os integrantes do Tono falarem sobre seu canto e comenta:

— (
O produtor
) André Midani escreveu que o mais importante num cantor não é timbre ou afinação, mas a capacidade de transmitir o sofrimento. Porque o sofrimento transmitido vira bálsamo. Na dor nos encontramos.

Mas também no amor. Em “Ruth rainha cigana”, o compositor celebra sua mulher há 50 anos, com citações à filha, Amora, e à neta, Julia. Em “Bloco da Preta Gil” festeja a “alegria da alegria” presente no carnaval. Em “Catulina” destaca o poder da educação ao contar a história de uma professora. E, em “Bang bang”, lembra Joaquim Nabuco e defende a necessidade de uma segunda abolição da escravatura.

Misturando saberes, entre sério e gaiato, Mautner põe ordem nesse mosaico:

— O músico sabe tudo. Depois dele, o poeta. E, depois, o cientista.



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