Maria do Rosário: “Não quero ser a agredida, mas a mulher que o derrotou”

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No Dia Internacional da Mulher, a deputada Maria do Rosário (PT-RS) fala sobre sua recente vitória na Justiça: no último dia 19, o Supremo Tribunal Federal (STF) manteve a condenação por danos morais contra o presidente Jair Bolsonaro no emblemático caso em que ele disse que não a estupraria “porque ela não merecia”.

O fato se deu em 2014, na Câmara, enquanto Bolsonaro discursava no plenário, e a primeira decisão desfavorável ao agora presidente ocorreu em 2015, quando a Justiça do Distrito Federal determinou que pagasse R$ 10 mil à petista, além de postar a sentença em seu canal do YouTube — posteriormente, foi intimado a publicar a retratação em todas as suas páginas oficiais e redes sociais e, também, em um jornal de grande circulação.

A batalha jurídica, que passou pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) antes de chegar ao STF, não está oficialmente terminada – ainda cabe recurso –, mas a parlamentar considera que um passo importante foi dado.

“Ver a punição desse senhor por agressão verbal significa muito no sentido de derrotar todos os agressores”, afirma.

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A mesma agressão já havia sido cometida mais de dez anos antes, em 2003, também na Câmara, quando, além do insulto inicial, Bolsonaro a empurrou e chamou de “vagabunda”.

Para Maria do Rosário, os dois episódios estão ligados ao surgimento de notícias falsas que até hoje circulam sobre ela nas redes sociais.

Em entrevista exclusiva à Pública, contou que ataques orquestrados atingiram não apenas a ela, mas também a sua filha. “Um dos apoiadores dele passava mensagens por WhatsApp para os grupos dos parlamentares, e eles riam de mim e da minha filha”, revela. “Todos os ataques a ela foram muito difíceis de serem superados, ela adoeceu, tivemos muitos problemas.”

Ministra dos Direitos Humanos no governo Dilma Rousseff, Maria do Rosário diz o que espera de Damares Alves, nova titular da pasta, fala sobre a nova formação da Câmara e explica como tem sido a relação com a bancada do PSL, partido de Bolsonaro, sobretudo com as deputadas.

“A Câmara sempre teve uma tradição de muita solidariedade entre as mulheres de todas as bancadas, sempre houve um apoio mútuo, e este ano a bancada feminina nem está organizada como foi em anos anteriores, porque é difícil lidar com mulheres que entraram dizendo que vão atacar outras mulheres.”

Qual o significado dessa vitória no STF para você?

Essa vitória é muito importante porque, quando isso tudo começou, esse [então] parlamentar me transformou em alvo de uma turba de pessoas que desvalorizam os seres humanos e atacam as mulheres. Na verdade, não se trata só dele, mas de um movimento de ódio liderado por ele no Brasil contra todos aqueles que enfrentam suas ideias retrógradas.

Ver a punição desse senhor por agressão verbal significa muito no sentido de derrotar todos os agressores. No começo desse processo, ele [Bolsonaro] transformou a minha imagem pública mentindo, dizendo que eu era defensora de bandido, de pessoas que haviam cometido estupro, porque os homens que agridem, como ele, muitas vezes usam desse expediente de colocar a culpa da agressão na mulher, dizendo que reagiram a alguma coisa.

Essa resposta jurídica, dele ter sido condenado por danos morais e ter que se retratar, é também uma forma de dizer que ele foi responsável pela agressão. Não gosto de ser vista como a pessoa que foi agredida por ele, prefiro ser a mulher que o derrotou. Para mim, é muito importante que esse não seja visto como um processo meu, mas para que nenhuma mulher seja chamada de vagabunda, desvalorizada em seu ambiente de trabalho ou em qualquer lugar.

A vitória jurídica a fez ressignificar esse episódio?

Sim. Em 2003, quando ele me agrediu no Salão Verde, registrei o episódio no Conselho de Ética da Câmara e foi arquivado. Mais de dez anos depois, ele repetiu as mesmas frases. Quando isso aconteceu, já não confiava mais no sistema parlamentar, em que deputados homens protegem a si próprios, e resolvi processá-lo na Justiça comum.

O significado da vitória, para todas as mulheres, não só para mim, é que ninguém mais pode se esconder atrás de foro privilegiado ou qualquer outra coisa. Como deputado, ele alegava que podia dizer o que quisesse, então mudou completamente a jurisprudência disso: não, não se pode dizer o que quer, não se pode usar o seu lugar político ou de poder para oprimir quem quer que seja.

Foi uma mudança na jurisprudência brasileira muito importante no sentido de que as autoridades brasileiras, principalmente elas, também têm que responder em processos dessa natureza como cidadão comum, sem poder alegar privilégio na tramitação ou um pretenso direito de liberdade de ofender ou fomentar o ódio. Em 2003, arquivaram a denúncia, me senti muito impotente diante de um Parlamento machista.

Em 2014, com o apoio de advogadas e advogados e do movimento de mulheres, processei, na Justiça comum, e venci, vi que era possível derrotá-lo. O problema da humilhação pública que não só eu, mas todas as mulheres sofrem, sendo atacadas seja em uma cidade pequena ou em uma cidade grande, é que o sem-vergonha que agride a mulher fica grudado nela o resto da vida, de uma forma que sempre que olham para ela lembram dele.

Comecei a reparar que a violência política está muito presente: muitas mulheres nas Câmaras Municipais, Assembleias Legislativas e mesmo na Câmara dos Deputados são desrespeitadas simplesmente por terem uma opinião contrária ao que determinados homens têm. Não basta só, portanto, ocuparmos mais vagas no Parlamento ou na política, queremos fazê-lo com respeito às nossas opiniões.

As redes sociais de Jair Bolsonaro se converteram em importante ferramenta de comunicação oficial – ele utiliza seus perfis pessoais para divulgar ações de governo e fazer anúncios importantes, muitas vezes dispensando o contato com a imprensa. O presidente será obrigado a divulgar retratação a você em seu Facebook e YouTube. Especificamente sobre isso, qual seu sentimento?

Acredito que essa é uma forma educativa para que todos os homens que fazem isso saibam que, se seu mito tem limites, eles também têm. É só esse meu objetivo, o dinheiro é simbólico, tanto é que tenho o compromisso público de distribuí-lo para as mulheres — vou decidir com o movimento como fazer isso, se encaminho para algumas entidades ou a dez mil mulheres para ficar como símbolo de que esse é um dinheiro de retratação e danos morais de um machista. Danos morais nunca passam e não há dinheiro que pague. A única coisa que me interessa é o símbolo disso.

Desde que o episódio da agressão aconteceu, em 2014, você e Jair Bolsonaro tiveram algum tipo de contato?

Nunca falei com ele. Nem em 2003, quando era uma jovem deputada chegando na Câmara e aconteceu aquela agressão gratuita no Salão Verde, nem por todos esses anos. Não tenho estômago para me dirigir a uma pessoa como essa, que me fez ter que explicar para minha filha pequena o que significava a palavra “vagabunda”, porque sem querer ela viu aquilo na TV [Bolsonaro a insultou durante uma entrevista à RedeTV].

Eu realmente nunca dirigi a palavra e não pretendo dirigir a palavra jamais. Peço, inclusive judicialmente, que a retratação seja feita sem nenhum contato, porque acho que não é uma figura que mereça de minha parte nenhum gesto. Não se trata apenas de uma opinião pessoal sobre o que aconteceu comigo, mas do que acontece com as pessoas LGBT, indígenas, negros e negras, todas as outras mulheres, Marielle Franco, com pessoas que perderam seus filhos.

Ao longo desses anos sei que esse senhor fomentou fake news, que seus filhos fomentaram, atacaram a minha filha. Aqueles episódios de agressão são uma partezinha do que tenho passado com os ataques desse grupo – existe um grupo criminoso por trás dessas fake news.

Por que você acha que se transformou em um alvo de Bolsonaro?

Inicialmente talvez não fosse nem comigo, era uma raiva das mulheres. Eu estava ali defendendo uma ideia. Naquele período, em 2003, era relatora da CPI contra a exploração de crianças e adolescentes e estava fazendo exatamente o oposto do que ele disse, eu não estava defendendo — jamais defenderia — alguém que cometeu um estupro; ao contrário, denunciei mais de 250 pessoas, entre elas autoridades públicas, vinculadas de alguma forma à rede de exploração sexual.

Visitei 22 estados verificando a situação de crianças vítimas de abuso sexual. Fui relatora e autora das principais leis brasileiras de combate à exploração sexual, mas as pessoas não sabem disso. Eu, que sou autora dessas leis, acabei sendo atacada como defensora de bandido, enquanto esse sujeito que nunca fez nada teve uma imagem construída como se fosse capaz de enfrentar o crime.

Mas, se você comparar as contribuições ao Brasil de cada um de nós — e não só as minhas, mas de outros parlamentares [as de Bolsonaro] —, é abismal.

Você falava sobre os ataques de que é vítima nas redes sociais. Desde quando ocorrem? Considera que sejam orquestrados? Identifica alguma mudança significativa neles depois que Bolsonaro foi eleito presidente?

Considero que esses ataques foram e são orquestrados. Acho que são sincronizados, inclusive, e tenho vários exemplos sobre isso. Para mim, o início deles tem a ver com 2003 e a mentira contada por Jair Bolsonaro de que eu o teria chamado de estuprador, o que não fiz.

Ele parou como um histérico na minha frente dizendo “então você está dizendo que sou estuprador?”, depois olhou para mim de cima abaixo e disse “não te estupro porque você não merece” — como se ele pudesse julgar a mim ou a qualquer mulher. Posteriormente, em entrevista, ele alegou a questão da aparência, de ser feia ou não ser — eu não ligo a mínima para a opinião dele ou de quem quer que seja —, o que quero dizer é que ele não tem o poder, como homem, e nenhum homem deve ter, de escolher mulheres que possam ser estupradas.

Ele não tem o direito de dizer essas coisas em público sob pena de formar uma cultura do estupro, porque, além de tudo, ele é uma liderança política do país. E acho que foi isso que fez, ajudou a formar uma cultura de poder e de estupro no Brasil.

Depois daquilo, quando inventou as mentiras para se justificar por ter me chamado de vagabunda, me empurrado, aí as fake news começaram, como se eu tivesse defendido aquele que matou a menina [Roberto Aparecido Alves Cardoso, o Champinha, assassino de Liana Friedenbach]. Isso é uma coisa absurda.

Sinceramente considero uma acusação vil contra a minha pessoa, porque sempre me coloquei no lugar daquela menina e daquela família. O mais difícil de tudo isso foi que, com seu crescimento político, ele [Bolsonaro] foi crescendo também no ódio: quanto mais ódio e fake news fomentava, mais foi crescendo e mobilizando os machistas e também as pessoas desavisadas que queriam o fim da violência, com quem a gente dos direitos humanos talvez não tenha conseguido se comunicar.

Ligar direitos humanos à promoção da violência é pior do que qualquer outra fake news. Depois, vi novamente crescerem as mensagens quando fui ministra dos Direitos Humanos e defendi a Comissão Nacional da Verdade. Novamente fui mexer com ele, que não é um representante dos militares constitucionais, mas do ódio da ditadura, das forças que torturaram, prenderam e mataram. Fora isso, apresentei projetos em defesa das pessoas LGBT.

Há algum episódio que destaque como mais grave?

O que é pior para mim em tudo isso? Os ataques à minha filha, à minha família. Um dos apoiadores dele passava mensagens por WhatsApp para os grupos dos parlamentares, e eles riam de mim e da minha filha. Todos os ataques a ela foram muito difíceis de serem superados, ela adoeceu, tivemos muitos problemas, mas ela foi salva pela sua força e pela sua família.

A hipocrisia dos que dizem que defendem a família fazia com que esses deputados distribuíssem entre si imagens hackeadas de uma menina menor de idade. Faço questão de te dizer que ela é uma menina muito boa, feminista, tem consciência absoluta do que nós vivemos e do porquê a mãe dela é agredida.

Superou o sentimento de tristeza, mesmo que tenha enfrentado na escola, na rua e no Uber, em todos os lugares, pessoas que chamam sua mãe do que aquele sujeito chamou. Ainda que até hoje tenha que ouvir essas coisas, agora sabe responder.

Você poderia explicar melhor o episódio envolvendo a sua filha?

Na época da campanha do “bela, recatada e do lar”, minha filha fez uma foto com as amigas. A imagem, que estava em sua conta fechada do Instagram, foi hackeada, postada em um outro país e distribuída no Brasil. Era uma brincadeira como todo mundo fez, e ela era uma adolescente de 15 anos.

A comparação era sempre a seguinte: essa é a filha da Maria do Rosário, e, do outro lado, esse é o filho do Bolsonaro. Os deputados passavam aquilo entre si e acabou chegando nas redes sociais. Há algumas semanas, aconteceu de novo: acho que pagaram uma atriz para se passar por ela defendendo traficantes.

Não é ela, só que, quando anda por aí, as pessoas a atacam por essas coisas, assim como me atacam dizendo que fiz um projeto para casar pessoas com animais, ou que fui buscar a Suzane von Richthofen na cadeia. São coisas absurdas. Não é o acaso.

Na semana em que o Ministério Público do Rio de Janeiro trouxe a público que no gabinete de Flávio Bolsonaro trabalhavam milicianos possivelmente ligados ao Escritório do Crime, sai um fake dizendo que a mãe e a irmã do homem que deu a facada em Bolsonaro trabalham em meu gabinete. Cá para nós, isso é o acaso? Não é. Sei muito bem o que é ser atacada. Mas sei também o que é resistir.

As últimas eleições modificaram o perfil da Câmara dos Deputados, que agora conta com mais militares e religiosos. A presença do PSL, partido do presidente, também cresceu consideravelmente na Casa. Enquanto deputada, você já consegue sentir na prática os efeitos dessa mudança? De que maneira?

Uma vez um jovem deputado teria perguntado ao Ulysses Guimarães — e isso sempre se fala nos corredores da Câmara: “Essa legislatura está difícil, não é, doutor Ulysses?”, ao que ele respondeu: “Meu filho, espere a próxima”. Eu olho para essa legislatura querendo que Ulysses não tenha razão, que ela seja o ápice da despolitização do Brasil.

O Brasil precisa de uma cultura política democrática, e o fato de não a ter, de não haver uma cultura em que as pessoas fiscalizem e reivindiquem seus direitos no serviço público, no transporte coletivo, na escola, reivindiquem qualidade de direitos, faz com que a Câmara viva esse momento em que abriga a elite do atraso.

Se estamos ali por algum motivo, é para que sejamos oposição: uma oposição qualificada, que procura diálogo com os setores pensantes da sociedade brasileira.

Mas, em termos da rotina e dos processos da Câmara, você já sentiu alguma diferença?

Vejo que o toma-lá-dá-cá só aumenta, quanto menos qualidade política na atuação parlamentar, mais aumenta o fisiologismo. Tem uma situação nova na política: quem se elegeu presidente não se elegeu por sua formação ou capacidade, então há uma disputa no plenário de quem se demonstra mais próximo do perfil do presidente.

Você imagina um grupo de parlamentares disputando entre si quem diz mais ataques e impropérios contra o outro, sem estudar projetos, que ocupa o microfone e os corredores só para o ataque? Já tivemos de tudo, até mesmo entre mulheres.

A Câmara sempre teve uma tradição de muita solidariedade entre as mulheres de todas as bancadas, sempre houve um apoio mútuo, e este ano a bancada feminina nem está organizada como foi em anos anteriores, porque é difícil lidar com mulheres que entraram dizendo que vão atacar outras mulheres.

Como tem sido a sua relação com as deputadas do PSL?

Não tem relação ainda. Toda parlamentar, assim como eu, foi recebida na Câmara dos Deputados por Jandira Feghali, Benedita da Silva, Luiza Erundina. Eu estou à disposição, junto a essas colegas, para receber bem todas as deputadas. Mas, se vier com agressão, não será considerada.

Então há interesse de diálogo, caso exista respeito?

Interesse de diálogo político, com essa linha de governo, nenhum. Sempre conversei com pessoas das quais discordo, mas com essa linha de “vou bater, vou dar soco”… Esses dias havia um projeto que citava a Nise da Silveira e uma pessoa do PSL disse no microfone “dei um Google no nome dessa senhora e decidi que ela não merece essa homenagem”.

Queriam impedir a votação da homenagem à Nise da Silveira, uma das maiores conhecedoras de saúde mental no Brasil, premiadíssima, aluna de Jung. É difícil lidar com isso, está faltando cultura geral.

A nova legislatura conta com um número mais elevado de mulheres – antes eram 51, agora são 77. O que isso significa na prática? As mulheres compõem uma bancada no sentido de propor e lutar por pautas comuns – algumas ao menos?

A bancada feminina é uma instituição da Câmara antes mesmo de ser reconhecida como tal. Ela vem do “lobby do batom”, do período constituinte, que assegurou dentro do texto constitucional a igualdade jurídica entre homens e mulheres. Essas mulheres criaram uma trajetória, e há duas legislaturas foi criada uma estrutura.

A Câmara conta com reconhecimento da bancada feminina através de uma estrutura de funcionamento, com a Secretaria da Mulher, Procuradoria, Comissão da Mulher. Sempre houve composições de todas as linhas ideológicas, e as feministas sempre estiveram junto das mulheres não feministas para defender pautas em comum, como o enfrentamento à violência e a igualdade no trabalho.

Agora vamos ter a reforma da Previdência, e como é que as mulheres vão se posicionar? Somos as mais atingidas na reforma da Previdência. Não sei se temos condições de manter o funcionamento da bancada feminina como já existiu se o que está em jogo é a própria Constituição, que foi o que nos uniu até agora.

O PSL está no centro de um escândalo de candidatas laranjas. O presidente nacional do partido, Luciano Bivar, é acusado de envolvimento no esquema. Em entrevista à Folha, ele disse que “política não é muito da mulher”. Como você vê tudo isso? E como essa visão se reflete na atuação parlamentar do partido e no próprio governo Bolsonaro?

O que me preocupa nesse escândalo é que, mais uma vez, as mulheres foram desrespeitadas. Essa lógica de que política não é de mulher é uma tentativa de justificar o desvio do dinheiro que nós conquistamos justamente para tentar atingir um equilíbrio entre homens e mulheres na Câmara dos Deputados [a lei obriga que os partidos destinem 30% dos recursos do fundo partidário e do fundo especial de campanha para candidaturas femininas para aumentar a presença de mulheres na política].

O que está por trás dessa frase é a apropriação do dinheiro destinado às mulheres. Essa é uma questão que os tribunais terão de ver, que envolve responsabilidade dos partidos. Quem tenha cometido erros ou crimes em relação a isso vai ter que responder, mas o que me preocupa mais é que queiram acabar com os direitos que conquistamos enquanto mulheres.

O sistema de financiamento que assegura recursos para as mulheres serve justamente para que dentro dos partidos não exista um poder nos impedindo de exercer mandatos e haja um equilíbrio de recursos. Isso garantiu um aumento da presença feminina no Parlamento, independente de partidos.

No próprio PT isso foi importante para nós. Isso nos mostra que o sistema é bom, o que não é bom foi o uso que o PSL, no caso, fez como partido. Mas já estou vendo gente dizendo que o sistema não funciona, porque querem, na verdade, acabar com algo importante para as mulheres, que significa diminuir os prazos para que tenhamos igualdade de presença política no país.

Eles driblam a regra, usam o dinheiro das mulheres e agora vão querer tirá-lo definitivamente para que não precisem nem ter que responder por uma regra.

Há apenas duas mulheres entre os ministros de Bolsonaro, uma delas é a pastora Damares Alves, titular da pasta da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Quais as suas expectativas em relação à atuação de Damares nessa frente, sobretudo em relação aos direitos das mulheres?

Quanto à situação pessoal dela, tive a oportunidade de me solidarizar publicamente, porque realmente não tem como deixar de ser solidária à situação de uma pessoa que relata ter sido vítima de atos graves de violência, como abuso sexual. Como mulher e pessoa, ela tem minha solidariedade.

No aspecto político, acho que a pasta está sendo desmontada. Onde está a Comissão Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo? Ficou lá atrás. Qual a atuação para garantir que os fiscais do trabalho e a polícia consigam enfrentar o trabalho escravo? Qual é o orçamento com que conta a Comissão sobre Mortos e Desaparecidos?

Qual o trabalho feito agora, no carnaval, para enfrentamento à exploração sexual de crianças? Por que o Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência lançou uma carta dizendo que fechará as portas, já que não poderá fazer reuniões no próximo período? Por que foi extinto o Conselho Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional? O que acontece com os programas de proteção à testemunha – o Provita [Programa de Proteção a Testemunhas], o PPCAM [Programa de Proteção a Crianças e Adolescentes Ameaçados de Morte]? E o Programa de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos?

O que está sendo feito? Por que os indígenas estão sendo atacados e por que, quando aconteceu a chacina no Rio de Janeiro – na qual as pessoas levaram mais de 40 tiros, segundo o Ministério Público em investigações preliminares –, não houve uma palavra da pasta de Direitos Humanos? Onde estava o ministério diante da questão de Brumadinho?

Cada um de nós que antecedeu a ministra Damares tentou fazer o seu papel, e não vejo que esteja acontecendo qualquer coisa [nesse sentido]. Mas também não acho que seja responsabilidade dela, porque, na verdade, ela tem um chefe contra os direitos humanos. Ninguém vai fazer nada que o presidente da República não queira.

Em menos de uma semana, o assassinato de Marielle Franco completará um ano sem solução. Vivemos ainda uma época de questionamento das causas que ela defendia. Qual a importância de manter viva a sua memória?

Por que não temos respostas sobre a morte da Marielle? Vou dizer algo que não disse em lugar nenhum, mas é meu sentimento: não há como um crime desse acontecer sem que agentes do Estado tenham alguma relação com ele, sem que a política e a ação de grupos organizados estejam atuando em conjunto para tentar impedir a verdade de aparecer.

Eu realmente penso que essa morosidade dificulta, mas mostra, como no caso do Amarildo, que as responsabilidades estão sendo escondidas da sociedade. Manter a memória da Marielle é nos manter vivos. Se não conseguirmos manter viva a memória de Marielle, todos nós também somos alvo.

Nós não conseguimos proteger Marielle, como não conseguimos proteger as meninas negras e todos os atacados. Se ela for esquecida, simbólica e fisicamente nós também somos alvo. Todos que discordam, todos que ousam. Simbolicamente, hoje é Marielle que nos protege, porque a sua morte e a busca por verdade mantêm alguma mobilização em torno dos ataques aos defensores de direitos humanos. Nós devemos a nós mesmos, a ela e ao mundo uma resposta sobre isso.

*Este conteúdo foi publicado originalmente no site da Agência Pública.



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