Os bandidos grandes não fazem home office. Enquanto estamos presos em casa para conter o avanço do coronavírus, circula no Congresso Nacional uma medida provisória que periga concretizar um dos maiores roubos da história do país. Ao premiar grandes quadrilhas criminosas, ela seria um desastre para o ambiente de negócios no Brasil, em especial na Amazônia.
É a Medida Provisória 910, editada pelo presidente da república no final do ano passado (aproveitando o período de distração do Natal). Sob o pretexto de ajudar na regularização fundiária, a medida não faz nada para desafogar os órgãos de terras sobrecarregados. O que ela faz é entregar terras públicas para quadrilhas de grileiros, bandos especializados em invadir e especular. Isso é particularmente nocivo para o futuro da Amazônia.
A Amazônia abriga diversas atividades econômicas: pecuária, mineração, madeira, agricultura, pesca, turismo, produção industrial, essências naturais, cacau, açaí. A lista é imensa. Os produtos da Amazônia são valorizados. A região já tem vários potenciais econômicos e pode oferecer oportunidades de desenvolvimento, geração de renda, lucro e empregos.
Tudo isso de forma racional, preservando os recursos naturais, mantendo de pé a floresta e conservando os rios, responsáveis pela manutenção do regime de chuvas em todo o continente e pelo equilíbrio do clima em todo o planeta. O problema é uma atividade econômica em especial, que é responsável pela maior parte do desmatamento ilegal, pela violência, pela corrupção e pelo clima geral de insegurança na região. Trata-se da indústria de roubo de terras públicas.
A maior parte das terras – onde estão as florestas – da Amazônia são terras da União e dos estados. Um dos negócios mais lucrativos na região é invadir essas terras, expulsar ou assassinar as populações locais, roubar a madeira, queimar o resto da floresta, forjar uma ocupação produtiva para pecuária e vender títulos falsos de propriedade. Ou simplesmente fazer pressão política para legalizar a invasão criminosa. Essa indústria de roubo de patrimônio público sustenta quadrilhas ricas e bem estruturadas. Ela mantém milícias armadas e comanda assassinatos em série. Naturalmente, afugenta os empresários que tentam investir de forma honesta na região.
As terras públicas, isto é, o patrimônio de todos os brasileiros, representam mais de 60% da área total da Amazônia. É lá onde a grilagem mais deixa rastros de destruição e prejuízos. Estamos falando de grupos que invadem, queimam, desmatam, falsificam documentos de posse e, depois, ganham milhões com a venda dessas áreas, que pertencem a todos nós. Essas pessoas são responsáveis por boa parte do desmatamento do território amazônico e por criar na região um ambiente de violência e corrupção, que intimida empresários, investidores e produtores.
Além da destruição dos recursos naturais, a ação dos grileiros mancha a imagem do agronegócio legal, aumenta a insegurança jurídica e a promove uma concorrência desleal de mercado, o que acaba afastando quem quer agir de acordo com a lei. Enquanto não acabarmos com a grilagem, não conseguiremos atrair bons negócios já que, na prática, estamos fazendo justamente o contrário. Em 2019, por exemplo, quando as queimadas e o desmatamento na Amazônia atingiram a maior taxa anual dos últimos dez anos, vários grupos de investidores que caminhavam para iniciar atividades econômicas na região, desistiram de fazer isso.
Portanto, adotar medidas para coibir a ação desses grupos criminosos, como manter as áreas de conservação do país e promover a destinação para conservação e usos sustentáveis das florestas públicas não destinadas, não só é melhor para o meio ambiente, como também mais lucrativo para o Brasil. Os ganhos são infinitamente maiores do que anistiar os bandidos.
O argumento furado de quem defende a MP da Grilagem é que os invasores, se legalizados, passariam a usar a terra de forma produtiva. Isso não é verdade. A terra já era produtiva antes. Uma das áreas com maior invasão é a Floresta Nacional de Jamanxin, no Pará, uma unidade de uso sustentável reservada especialmente para ser concedida a uma empresa privada que produz madeira e outros produtos da floresta de forma sustentável. Os criminosos impediram o uso econômico da área e só promoveram destruição para enriquecimento próprio.
Quem defende os bandidos sob argumento econômico também poderia pedir a anistia das quadrilhas de tráfico de drogas ou de armas, dos bandos de contrabandistas, alegando hipocritamente que eles geram emprego. Se um bando de criminosos invadir a Praia de Ipanema, cercar a área e lá criar um shopping de contrabando, quem vai defender que o terreno público seja entregue a eles?
Existem caminhos para acabar com o roubo de terras públicas na Amazônia. O primeiro passo não é anistiar mas punir os criminosos.. Para isso, temos várias formas. Uma delas é a Força-Tarefa Amazônia, do Ministério Público Federal (MPF), que trabalha muito, apesar da falta de estrutura, para acabar com a grilagem. Em atuação desde agosto de 2018, a Força-Tarefa já registrou pelo menos R$ 580 milhões em prejuízos documentados e mais de 80 pessoas indiciadas por crimes ambientais. Entre os acusados de desmatamento ilegal e grilagem está, por exemplo, um ex superintendente do Ibama no Acre, que ajudava grandes pecuaristas da região a fraudar documentos, o que, para os procuradores, escancara o quanto o Estado tem sido omisso.
Outro argumento fajuto para a MP da Grilagem é que ela favoreceria a regularização de pequenos produtores. Em nota da assessoria de imprensa do MAPA, Teresa Cristina afirma que a medida pode beneficiar 300 mil famílias e que a área média dos terrenos a serem regularizados é de 80 hectares. Só que a MP da Grilagem aumenta a área para regularização – isto é, para invasão anistiada – para até 5 mil hectares. Estamos falando de áreas gigantes, ocupadas em escala industrial por quadrilhas especializadas.
O MPF tem avisado o quão ruim é a iniciativa do governo com essa Medida Provisória. A Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC) encaminhou uma nota técnica ao Congresso Nacional, ressaltando que a MP 910 coloca em risco uma série de bens jurídicos constitucionalmente tutelados, como o acesso justo e legítimo à terra, mediante reforma agrária, e os direitos de grupos étnicos e culturais. A nota também evidencia, entre outros pontos, que a flexibilização dos requisitos para a regularização fundiária aumenta o potencial de gerar condutas criminosas de invasão de terras públicas e questiona a necessidade de uma medida provisória para tratar desse assunto.
Outra carta, assinada conjuntamente pela 2ª Câmara (Criminal), 4ª Câmara (Meio Ambiente e Patrimônio Cultural), 5ª Câmara (Combate à Corrupção) e pela 6ª Câmara (Populações Indígenas e Comunidades Tradicionais), também apresenta inconstitucionalidades na edição da Medida Provisória.
Segundo o documento, a flexibilização proposta, além de criar um cenário de estímulo a novas ocupações, ainda promove o acirramento de conflitos no campo. “Trata-se da jurisdicização do estado de natureza, com impacto desproporcional sobre agricultores familiares, povos e comunidades tradicionais e sobre o meio ambiente, com toda coletividade que dele depende”.
Para a procuradora federal e coordenadora da Força-Tarefa Amazônia Ana Carolina Haliuc Bragança, o Estado tem, historicamente, falhado em suas políticas de proteção ao meio ambiente, reforma agrária e proteção à comunidades tradicionais. Ela afirmou, durante o Seminário “Amazônia: Desmatamento, Crime Organizado e Corrupção”, realizado no mês de fevereiro em Brasília, que essa incapacidade do poder público resultou em mais de milhares de hectares desmatados, mortes, desaparecimentos e casos de tortura, relacionados a disputas entre madeireiros, pecuaristas, grileiros, assentados e comunidades tradicionais nestas áreas. “Nenhum ator econômico foi efetivamente atendido, seja pelos projetos de regularização fundiária para atividade agropecuária, seja para uma eventual concessão de áreas para, por exemplo, manejo florestal. É uma área em que o estado, claramente, falhou em todas as políticas públicas”, concluiu.
Várias entidades ligadas ao meio ambiente também emitiram notas técnicas que apontam os riscos da aprovação definitiva dessa proposta. O Instituto Democracia e Solidariedade ressaltou os impactos negativos que a MP pode causar na Amazônia, com pelo menos mais 1,7 milhões de hectares desmatados ilegalmente somente por grilagem nos próximos cinco anos na Amazônia, perda que equivale a duas vezes a Região Metropolitana de São Paulo. “É preciso alertar à sociedade, ao setor privado e ao governo para o fato evidente de que ao premiar (com titulação facilitada) quem ocupou ilegalmente e desmatou ilegalmente, ou seja, não cumpriu o Código Florestal a partir de julho de 2012, a MP estará sinalizando que o crime de ocupação de terras públicas e desmatamento ilegal na Amazônia compensa”.
Já o Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) pontua que a medida vai na contramão do que precisa ser feito para reduzir o desmatamento na Amazônia. “Parte da destruição que ocorre na floresta amazônica é causada por pessoas que visam lucrar com a terra pública, pois invadem as nossas florestas e as desmatam esperando que o governo emita o título de terra cobrando valores abaixo do mercado.
Essa prática garante altos lucros com a venda do imóvel após a titulação. Assim, se aprovada, essa MP premiará com um título as invasões recentes (2011-2018) e poderá estimular um novo ciclo de ocupação, apostando que novas invasões também possam ser anistiadas no futuro. Além disso, a MP pode aumentar o risco já existente de perda de investimentos no Brasil, por conta da degradação ambiental na Amazônia”.
Um grupo com mais de cem organizações não governamentais divulgou uma carta no dia 13 de abril pedindo para o Congresso derrubar a MP. “Estamos sempre abertos para discutir regularização fundiária. Mas não é o caso dessa medida provisória”, diz Mario Mantovani, diretor da SOS Mata Atlântica. “Essa medida provisória estimula a farra da invasão de terra em larga escala no Brasil inteiro.
Punir o crime é fundamental, mas não é o suficiente. Precisamos garantir que os criminosos não sejam premiados. Foi partindo desse princípio e com o objetivo de barrar a MP da Grilagem que Greenpeace, GT Infraestrutura, Instituto Socioambiental (ISA), Instituto Sociedade, População e Natureza (ISPN), Observatório do Clima (OC) e WWF Brasil se uniram na campanha #MP910NÃO. A iniciativa pede que as pessoas falem sobre o assunto e divulguem nas suas redes sociais o movimento, cobrando dos parlamentares que façam a sua parte para não entregar nossas terras.
Para os porta-vozes da campanha, a real solução passa pela busca de alternativas que defendam os interesses nacionais, tragam justiça social e preservem o meio ambiente. As organizações deixam claro que não precisamos de uma nova lei, mas de investimentos e trabalho para fazer valer a lei que já existe hoje (nº 11.952/2009) e dá direito à terra para que mais de 190 mil pequenos produtores possam trabalhar.
No site da campanha, o cidadão envia um e-mail para parlamentares pedindo que sejam pensadas outras soluções que de fato estejam à serviço dos interesses do Brasil e que protejam nosso patrimônio natural. O prazo final para votação da MP 910 no Congresso é maio. Mas como algumas votações estão acontecendo mais rápido, existe o risco de essa MP destrutiva passar sem a devida atenção. Nós estamos presos em casa, ocupados em lutar contra a epidemia. Legalizar o roubo de uma grande parte das terras do país não vai ajudar ninguém agora.
*Com Angélia Queiroz
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