Homossexualidade proibida: os traumas vividos por pessoas submetidas à suposta “cura gay”

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“Estou naquela dura etapa em que seus pais levam você a um psicólogo e que um guia espiritual vai ‘curar’ sua preferência por mulheres”, escreveu a equatoriana Zulema Constante Mera em sua conta de Twitter. O ano era 2013 e ela tinha 21 anos. Após contar a seus pais que estava namorando com outra mulher, a relação familiar começou a desmoronar. Eles tentaram levá-la a um consultório de psicologia na tentativa de reverter sua sexualidade, mas o tiro saiu pela culatra. A profissional repetiu o que a própria jovem, estudante do último período de psicologia, havia explicado: que orientação sexual não é doença e que eram os pais que estavam errados ao não aceitar sua sexualidade. Mas não foi o suficiente. “Meus pais declararam guerra a mim. Acharam que tirando tudo de mim iria deixar de ser lésbica. Disseram que se eu não aceitasse as regras teria de ir embora de casa com a roupa do corpo e entregar as chaves do meu carro. E assim foi”, publicou a jovem no dia seguinte. Seu pai, Guillermo Mera, passou a ameaçá-la dizendo que faria com que perdesse o emprego, que a trancaria em casa, que a faria desaparecer. Essa última ameaça se concretizou, tornando-se o mais polêmico caso envolvendo clínicas de “restauração sexual” no Equador.

Zulema já estava morando com Cynthia, sua noiva, quando recebeu uma ligação de seu pai, dias após as ameaças, convidando-a para “consertar as coisas”. O que aconteceu, porém, se assemelhou a um sequestro. Guillermo buscou a filha para a tal reunião familiar, mas no meio do caminho freou bruscamente. Assim que outro carro emparelhou com o seu, um grupo de homens arrancou Zulema à força do carro de seu pai, que nada fez além de observar. Eles a algemaram e levaram em uma viagem de sete horas até o Centro de Recuperação Feminina “La Esperanza”, na cidade de Tena, na região amazônica do Equador. Ali, havia três regras básicas: era proibido fugir, roubar e “ser lésbica”.

Nas três semanas em que Zulema ficou escondida no “retiro espiritual”, permaneceu sob vigilância 24 horas e recebeu remédios como se tivesse uma adição química. Entre as práticas do tratamento, era obrigada a comer alimentos podres e a ler a Bíblia para entender que “Deus nos fez homem e mulher” e que ser lésbica era  “uma aberração”.

Sem receber notícias, sua noiva e amigos logo começaram uma busca pelo paradeiro da jovem. Em questão de dias, a causa já movia a Defensoria Pública, ONGs, ativistas pelos direitos das mulheres e até o cantor Ricky Martin, que compartilhou a história em suas redes sociais. Com tamanha repercussão, o governo local interveio para garantir sua liberdade. Em junho, Zulema estava solta.

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A tortura à qual a jovem foi submetida e seu caminho para sair da clausura estão descritos no livro “O fim do armário”, escrito pelo jornalista Bruno Bimbi. O texto conta as diversas consequências vividas por pessoas LGBT+  que se assumiram para suas famílias. Um capítulo é dedicado especificamente aos que foram submetidos à “Cura Gay”, como Zulema.

Seis anos depois do episódio de sequestro, a equatoriana evita dar entrevistas sobre o que passou, mas concordou em conversar com a reportagem de ÉPOCA. Ela conta que tenta colocar a vida de volta aos trilhos, que ainda está casada com Cynthia, mas que por hora as duas não pensam em ter filhos. Apesar de ter falado muito sobre a tortura logo que foi solta, explica ter decidido evitar o tema a partir de então; falar do assunto a faz reviver as dores.

Seguindo o que escreveu no Twitter logo após o sequestro, “família é família”: ela ainda busca ter uma relação amistosa com os pais, a quem conta ter perdoado. “O relacionamento com a minha família foi melhorando pouco a pouco. Me encontro com eles em certos momentos, nem todos como eles gostariam. A verdade é que não passo muito tempo com eles, mas estamos sempre em contato, faço visitas esporádicas. Viajamos juntos uma vez, até. Mas tudo isso sem Cinthya, porque minha mãe não a aceita por perto, nem aceita muitas coisas minhas, também.”

Cura gay no Brasil

Histórias semelhantes à de Zulema se espalham pelo Brasil. Em 2017, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) divulgou uma pesquisa de campo sobre Comunidades Terapêuticas, casas dedicadas à reabilitação de dependentes químicos, mas que o próprio relatório evidencia que parte delas abre suas portas para outras demandas. O texto aponta que, nesses espaços, “quem é identificado como homossexual, e consequentemente, como desviante, acaba sendo vítima de violência”.

No ano passado, o Ministério Público Federal, o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura e o Conselho Federal de Psicologia publicaram juntos um relatório sobre visitas a 28 Comunidades Terapêuticas. Em ao menos 14 das 28 instituições, “não há respeito à diversidade de orientação sexual e de identidade de gênero”. O documento descreve outras violações de direitos humanos em 16 lugares. Entre as práticas de castigo estavam privação de sono e supressão da alimentação, uso de violência física e trabalhos forçados. Em nove clínicas era disponibilizado o serviço de “resgate”, como o feito com a equatoriana Zulema: internamento forçado por meio de uma equipe que vai atrás da pessoa e a imobiliza, fazendo uso tanto de violência física quanto de contenção por meio da aplicação de medicamentos.

“O resgate virou o disque pizza”, denuncia Lúcio Costa, membro do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura. “Basta eu dizer que alguém na minha família é usuário de drogas que esse indivíduo está sujeito a uma ação com fortes indícios de sequestro. Um agrupamento de pessoas que resolvem ir no meio da madrugada à casa de alguém apontado como possível usuário de drogas e essa pessoa é retirada, muitas vezes com violência, e levada para essas comunidades.” Ele lembra de um dos retornos recebidos pelos profissionais que fizeram as visitas: “um pastor tentava convencer que o comportamento [orientação sexual homoafetiva] era possessão de espírito maligno ou Pombagira”.

O grupo de investigação visitou três das 78 unidades do grupo “Fazenda Esperança”, que está presente em 25 estados e no Distrito Federal, além de mais 36 unidades localizadas em mais de 16 países, tendo um total de aproximadamente 2.500 internados espalhados pelo mundo. Em uma das unidades visitadas, exclusiva para mulheres, a ordem dada às lésbicas é que devem ser “controlados os comportamentos e características corporais”. A orientação sexual é vista como opção, “que pode ser gerida em busca de identidade sexual feminina”. Na mesma casa, para além de tratamentos de dependência química, foi informado que “a instituição atende outras demandas”.

Intolerância familiar

O medo do eletrochoque foi um fantasma que assombrou as primeiras sessões de terapia de Mauro de Bias, carioca de 29 anos. Aos 14 anos, ele começou a perceber que, apesar de achar mulheres bonitas, se sentia sexualmente atraído por homens. “Pensei: ‘meu Deus, eu não posso ser gay!’”, lembra o jovem, criado por uma família católica: “Eu sofria muito bullying por ser afeminado, era sempre chamado de viado. Então isso sempre foi martelado forte na minha cabeça como algo errado, feio e pecaminoso”.

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Mauro de Bias teve de fazer terapia em um consultório psicológico que um bispo indicou aos seus pais Foto: Adriana Lorete / Agência O Globo

Aos 16 anos, em crise, ele disse a seu pai, ministro de matrimônio da igreja local, que era gay: “Eu tinha acabado de sair de um encontro da igreja e me sentia construindo uma vida em cima de uma mentira. Sentei no sofá e disse: ‘pai, sou homossexual’. Ele levantou, foi até a cozinha, virou uma dose de cachaça, voltou e me disse que não aceitava isso. Começou um discurso sobre Deus e pecado, sempre focando muito que eu iria para o inferno. No dia seguinte, ele me levou à igreja com a minha mãe e disse: ‘Você sabe que desgosto mata. E essa noite eu e sua mãe morremos um pouco’. Nessa hora, me foi imposto que, para continuar morando na casa dele, eu teria que aceitar ajuda para ‘superar isso’. A outra escolha era ser expulso de casa. Foi uma opção sem opção.”

Na primeira sessão, o psicólogo indicado pelo padre apresentou para seus pais uma tabela com “graus de homossexualidade” e explicou que o rapaz ainda não estava nem no primeiro nível, porque só sentia atração, sem ter tido qualquer experiência direta. O que, lembra Mauro, foi um motivo de alívio. A saída seria evitar o assunto ao máximo, até que fosse esquecido.

Seguindo o conselho de um bispo católico próximo à família, seus pais contrataram um pacote de dez sessões em um consultório de terapia indicado pelo sacerdote. “Foram dez sessões que me ajudaram bastante a me entender. A princípio só eu falava, mas em uma das últimas sessões ele me interrompeu e disse que deveria parar de dizer que eu era homossexual. Foi quando comentou que, caso esses atendimentos não fossem suficientes, eu poderia precisar passar por um tratamento de eletrochoque. Aquilo me deixou sob pressão. Depois da décima sessão eu nunca mais voltei lá e menti para meu pai que estava curado, que tinha recebido alta”, lembra o carioca.

Acabadas as dez sessões, temendo a prescrição de tratamentos mais intensos, Mauro resolveu repetir para todos e para si mesmo que não era gay e que, assim, a atração por mulheres apareceria em breve. Apesar de ainda desejar homens, engatou em um namoro com sua melhor amiga de classe, com quem conta nunca ter experimentado nada além de beijos rápidos. “A gente falava que tinha escolhido esperar”, lembra, aos risos. Esse relacionamento garantiu a paz dentro de casa. “Quando comecei o namoro, meu pai veio comentar comigo, querendo confirmar se ‘aquele outro problema tinha passado’. Eu só respondi rápido ‘passou, passou’. A gente já tinha perdido tantas noites brigando, aos gritos, por causa da minha sexualidade, que eu só queria viver em paz.”

A partir de então, Mauro decidiu esconder qualquer tipo de relação que tivesse. Chegou a namorar um rapaz, que dizia para os pais ser um amigo. O assunto tornou-se um elefante branco, no qual ninguém falava. Apenas aos 25 anos, já formado e empregado, Mauro finalmente conseguiu sair de casa e se assumir como homossexual. Desde então, ele e o pai não se falam mais.

A história de Mauro reflete muito a narrativa de “Boy Erased”, livro autobiográfico de Garrard Conley. Ele conta sua experiência em uma comunidade evangélica que tinha como objetivo “corrigir” a homossexualidade de seus membros. Assim como Mauro, Garrard também tinha uma família ultra-religiosa e também tentou se relacionar com uma menina, mas isso só o fez perceber como não sentia atração por mulheres. Foi o ponto de virada que o levou a concordar em participar de um “tratamento para homossexuais”.

Garrard falou a ÉPOCA sobre seus trabalhos atuais, também voltados à discussão dos tratamentos chamados de restauração sexual. “Me dedico, hoje, a estudar essa questão e já estou fazendo outros livros sobre essa dinâmica anti-LGBTI que tem se formado. Me surpreendeu, quando publiquei o livro, o número de mensagens que recebi e de quantos países diferentes as pessoas vinham. Percebo que as estratégias adotadas são muito parecidas em diferentes lugares: as horas sem sono, o tratamento da homossexualidade como um mal espiritual, a culpa e as penitências.”

Garrard conta que foi difícil lidar com a enxurrada de mensagens logo de início, porque muitas continham indícios suicidas e ele sentia um peso de responsabilidade por ajudar essas pessoas a encontrarem auxilio psicológico.

As mensagens vinham de cerca de 30 países diferentes, segundo o escritor. Hoje, ele tem se dedicado a estudar as conexões entre diferentes movimentos de cura gay em países distintos: “é evidente que há uma rede internacional, quero entender como ela se criou e como funciona”.

Em uma iniciativa parecida com a de Garrard, mas em um meio muito menos formal, o brasileiro Bruno Aguiar resolveu compartilhar no Twitter detalhes sobre sua vivência de “cura gay” dentro de uma comunidade evangélica. Os mesmos relatos de horas passando fome, noites sem dormir orando, e a final conclusão de que “sua homossexualidade não vai passar” são traços em comum. “Eles me disseram que meu caso seria de ‘matar um leão por dia’ e me proibiram de falar que eu era gay para qualquer outro integrante da igreja. Foi aí que decidi romper, escrevi um email enorme explicando tudo que me levou a sair da comunidade. Nunca me responderam”.

Homossexuais Anônimos

Jason Antunes, ator carioca de 48 anos, chamou a atenção de seus pais durante a adolescência: “Eles notaram que eu tinha uma tendência e me colocaram numa psicóloga para fazer terapia. Agradeço ter encontrado essa terapeuta, porque ela me mostrou um caminho, de forma que eu fiquei muito bem comigo mesmo. Ela perguntava se eu sentia vergonha do que eu era, me ajudou a me aceitar da forma que eu sou, como pessoa. Então notei que essa questão de preconceito estava muito ligada a mentira e a verdade. Afinal, o que é ser um ‘homem de verdade’? Então um dia eu cheguei em casa e falei que a doutora tinha me dado alta. Minha mãe disse ‘graças a Deus’ e meu pai falou, aliviado, que a psicologia tinha ‘dado jeito’ em mim”.

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Jason Antunes passou por um processo de “tratamento” da orientação sexual quando era mais novo Foto: Adriana Lorete / Agência O Globo

Jason manteve seu segredo guardado por muito tempo. Lembra que aos sábados ia para boates e aos domingos ia cantar nos cultos da igreja, chorando pela culpa. Logo a mulher do pastor começou a notar suas lágrimas e o abordou diretamente, perguntando se era gay, e dizendo que “aquele com pecado não pode participar da ceia do Senhor”. Se sentindo violentado, Jason disse que não queria conversar com ela e se afastou. Nos dias que seguiram, ele passou a ser perseguido pelas mulheres da congregação, que tentavam beijá-lo e abraçá-lo para ver como reagiria. Constrangido, saiu daquela comunidade religiosa e passou a buscar outras, sempre evangélicas. Até que, na terceira tentativa, em 1999, aceitou fazer a “cura interior”. “Eu tinha acabado de terminar um casamento homoafetivo e, por isso, estava disposto a virar hétero”, lembra.

Por indicação de um amigo que também era evangélico, e que também era gay, Jason descobriu o GA (Grupo de Amigos). Era um “grupo de recuperação para homossexuais”, nos moldes do AA (Alcoólicos Anônimos): reuniões semanais de aconselhamento, com atendimento pessoal, e encontros em grupo aos sábados. O formato de atendimento descrito por Jason é muito parecido com o que Garrard narra em Boy Erased. “Era muito triste, tinha muito choro. Eles diziam que isso vinha do conceito de pai, que houve falta da presença paterna, que nosso modelo de autoridade passou a ser figura feminina e que, por isso, o feminino começou a influenciar todos os aspectos da personalidade.”

As técnicas de tratamento envolviam horas de jejum, leitura bíblica e esportes. Jason conta que já ficou 72 horas seguidas sem comer e afirma que o objetivo era “a sublimação”, a canalização da energia sexual pela prática intensiva esportes, por exemplo. Por dez meses ele seguiu as indicações dos pastores se perguntando se, um dia, iria parar de sentir atração por homens. “Se era mesmo uma cura, eu queria olhar pra um homem e não sentir mais nada. Se era cura, eu queria olhar para uma mulher e sentir tesão. Até que eles me disseram que não, que eu teria que matar um leão por dia. Então eu respondi que isso não era cura”.

Ao ter essas respostas insatisfatórias, Jason decidiu se aceitar: “Notei que todo meu esforço me levava a entender que eu não mudaria. E que eu estava infeliz porque estava tentando ser alguém que não era. A minha essência era aquela, não tinha como mudar. Então, eu apenas não voltei mais”.

Hoje, ele ainda frequenta cultos evangélicos, especialmente os neopentecostais, mas sem vínculos diretos com nenhuma igreja, nem participando de grupos específicos. Ele afirma que sua sexualidade não interfere seu relacionamento com Deus. “Isso é algo inventado pelos homens”, conclui. “Hoje eu sou casado, resolvido, realizado profissionalmente. Eu sou mais feliz.”

O formato dos encontros vivenciados por Jason e Garrard também foi relatado pelo fisioterapeuta Kleber Rodrigues. Ele frequentou uma casa mantida pelo movimento evangelizador Jocum (Jovens Com Uma Missão), em Belo Horizonte. Há 12 anos, ele frequentava uma igreja batista em Belo Horizonte quando foi convidado aos encontros realizados no bairro Bonfim. Foi ali que, por dois anos, Kleber acreditou que conseguiria ser curado da homoafetividade.

Ele tinha 20 anos, em 2006, e um novo pastor tinha chegado em sua igreja. Logo nos primeiros dias de comando, o sacerdote tirou o rapaz do grupo de jazz — que frequentava desde os 16 anos — e disse que seria bom trocá-lo pelas reuniões da Jocum. “Não me pegou de surpresa. Sempre soube que era homossexual, mas naquela época achava que era muito errado. Naquela época eu achava que era muito possível extinguir isso. Vivia em negação”, lembra o mineiro,  explicando que todos os participantes deveriam fazer ofertas obrigatórias, sem um valor específico: “Eles diziam que era para dar o quanto você conseguisse.”

Na casa da Jocum, havia atendimentos pessoais uma vez por semana e em grupo a cada 15 dias. Também eram realizadas viagens para retiros espirituais, com cerca de 20 outros homens gays que buscavam expurgar o pecado da homossexualidade. Durante uma dessas viagens, Kleber conta que passou três dias em jejum absoluto. “Eles não tratavam como doença, mas eram enfáticos de que se tratava de um pecado, um espírito maligno se apoderando de você”, explica, relembrando as diretrizes. Os participantes não podiam ter contato fora das reuniões, caso se cruzassem em um culto, o indicado era fingir que não se conheciam. Nos retiros se ouviam palestras de pessoas que diziam ter abandonado “o pecado”.

As reuniões de rotina tinham um tom confessional. Os participantes deveriam contar sobre todos os momentos em que tinham sentido desejos por outros homens, mesmo em pensamento, e principalmente se chegaram a se masturbar. Então eram passadas as soluções: um banho gelado, passar horas em oração e mais jejum. Durante todo o tempo era repetido que, com o tempo e a disciplina, surgiriam desejos heterossexuais. Ele é taxativo sobre isso: “Nunca me aconteceu”.

Depois de dois anos de fome, banhos gelados e muita oração, Kleber percebeu que o sacrifício não valia a pena e não apresentava resultados. Resolveu abraçar a si mesmo. Hoje ele mantém sua fé evangélica frequentando uma igreja inclusiva. No celular, guarda o vídeo de seu casamento, realizado no gramado do estádio Mineirão. Ele e o marido, Wagner Macedo, ambos usando ternos azuis, trocam alianças com as mãos tremendo e os olhos cheios de lágrimas. Os dois disseram o sim durante uma sequência de três casamentos LGBT+. “Eu tenho apoio da minha família e ele também tem da família dele”, conta sorridente.

Em seu site oficial, a Jocum se apresenta como uma iniciativa internacional que, no Brasil, tem vários objetivos, entre eles “o apoio e a recuperação de dependentes químicos”. Não consta na lista nada sobre sexualidade, porém, há em outra área do site um texto sobre uma transexual que “se converteu, destravecou-se, homenzou-se do melhor jeito que pode”. Há um outro site, porém, que apresenta o SOS-sexualidade do Jocum: “um Ministério cristão que atua nas áreas da Educação, aconselhamento e terapia da Sexualidade”.

Segundo o mesmo site, “diante do caos em que se encontra a sociedade no que se refere à sexualidade humana”, o objetivo do SOS é “o enfrentamento de uma sexualidade adoecida, com o intuito de possibilitar soluções práticas e eficazes para uma orientação sexual saudável”.

Dois outros homens gays ouvidos por Época também contam terem feito doações financeiras, sob pressão de pastores, para que se vissem “livres do pecado”. Um deles, que pede sigilo de identidade, relata o que aconteceu: “Eles chamavam de fogueira Santa. Quando fazem uma fogueira Santa, o pastor convoca a igreja inteira a fazer doações. Eu estava recolhendo as doações dos outros e ele me interrompeu para dizer que Deus queria que eu doasse dois mil reais. Eu ganhava três mil reais de salário naquela época. Disse que não tinha esse dinheiro e ele me pressionou, falando que eu não tinha fé, que minha vida seria cheia de pecado e desgosto. Peguei um empréstimo e dei os dois mil reais. Antes disso, eu já tinha doado um laptop recém-comprado numa outra fogueira Santa, para me livrar do ‘pecado’ da homossexualidade.” Em uma igreja de Santa Catarina, ele era sempre levado ao púlpito e pastores tentavam “tirar o pecado” de seu corpo em sessões de exorcismo. “Eu me sentia profundamente envergonhado. Eles me empurravam, queriam que eu caísse no chão. Tudo na frente da comunidade. Sempre que eu entrava em um culto vinha alguém da equipe da igreja rezar na minha volta e já começavam a falar no pecado da homossexualidade. Aquilo foi me constrangendo até que me afastei. Hoje moro em outro estado”, conta o jovem de 23 anos que rompeu com o “tratamento religioso” em 2016.



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