Não se pode dizer que o ex-secretário da Receita Federal Marcos Cintra não seja um idealista. Demitido em setembro, depois de a discussão sobre a implementação de um novo imposto nos moldes da antiga CPMF — o famigerado e extinto “imposto do cheque” — ganhar corpo, ele continua inabalável em seus princípios. Ao falar a VEJA em seu escritório na Fundação Getulio Vargas, em São Paulo, o economista chegou a ficar com os olhos inundados quando abordou o tema. Para Cintra, o tal imposto é a única saída para o sistema tributário brasileiro. Aos 74 anos, o ex-secretário garante que não sente mágoa por ter sido desligado do governo e que continua atuando em congruência com o ministro da Economia, Paulo Guedes, com quem seus ideais são bem alinhados — inclusive, assegura, quanto a uma nova CPMF. Isso, apesar do veto de Jair Bolsonaro a qualquer tipo de imposto sobre pagamentos. Cintra, aliás, critica a postura do presidente. Queixa-se de que ele poucas vezes o chamou para conversar a respeito da reforma tributária. Em outras oportunidades, porém, Bolsonaro o teria convocado para tratar das investigações que a Receita fazia sobre seus familiares. Leia a seguir a entrevista com Marcos Cintra.
Quando a discussão sobre reforma tributária ganhou fôlego, o senhor foi demitido pelo presidente Jair Bolsonaro. Ele não sabia que o imposto único era o trabalho de sua vida? Fui o primeiro economista a se sentar junto do ministro Paulo Guedes na formação da equipe e no desenvolvimento do plano de governo de Bolsonaro, no fim de 2017. Eu tenho escrito “imposto único” na testa. Não é uma discussão que surgiu recentemente e suscitou uma reação contrária do presidente. Já na campanha ficou claro que o tributo seria satanizado. Temos 12 milhões de desempregados, outros 5 milhões desalentados e precisamos trabalhar para desonerar a folha de pagamento. É a única saída.
E por que houve essa resistência pública, que culminou na demissão? O presidente enfatiza que não entende de economia e que confia no Posto Ipiranga, o Paulo Guedes. Mas Bolsonaro é muito suscetível ao que a imprensa e alguns setores da economia dizem. Esses segmentos foram veementemente contrários à CPMF, embora o que eu queria fazer tivesse pouca relação com esse imposto. Como disse: não é CPMF. É um imposto sobre pagamentos, diferente da antiga contribuição provisória sobre movimentação financeira — contra a qual votei no Congresso. A antiga CPMF teve sua finalidade, o financiamento da saúde, desvirtuada. O imposto sobre pagamentos que eu defendo é universal e recai sobre toda a economia, substituindo tributos sobre salários. O presidente entendeu que a opinião pública estava contra, e o tributo ficou satanizado. Ora, se Bolsonaro não apoia, é evidente que fica muito difícil avançar nessa discussão — ela nunca foi técnica, sempre foi essencialmente política.
Como o senhor avalia a sua demissão? Bolsonaro sempre teve uma visão muito atrelada à mídia. Ele não conseguiu se libertar desse preconceito que as pessoas têm contra o imposto sobre pagamentos. Eu sempre manifestei a minha crença nesse modelo, mas, se o presidente não concorda, eu não teria mais que fazer lá. Não estou em busca de um emprego, fui cumprir uma missão. Portanto, dei ao Guedes liberdade para que me exonerasse. Interpretei que poderia continuar defendendo a ideia de fora do Executivo — como estou fazendo.
O presidente influencia o trabalho da equipe econômica? É claro que influencia. Minha exoneração é a prova disso. A pessoa que elaborava a reforma tributária do governo foi afastada por uma decisão estritamente dele. Por exemplo, Bolsonaro quer isentar do imposto de renda quem ganha até 5.000 reais. Ele quer entregar essa promessa e cobra a equipe. Mas acho legítima a intenção política do presidente. Tributar muito num país de renda baixa é doloroso.
Qual alternativa Paulo Guedes tem para viabilizar a desoneração da folha de pagamento? Bolsonaro está sempre monitorando a opinião de seus grupos de apoio. O que explica a minha exoneração é que o presidente se insurgiu contra isso. Acabei demitido. Mas o ministro continua mencionando esse modelo como a principal alternativa. Guedes quer a CPMF, não é novidade. Sempre foi a favor de um tributo sobre movimentações financeiras. Sabíamos que, se não conseguíssemos convencer o presidente da República, não teríamos sucesso. O debate foi interditado por Jair Bolsonaro, infelizmente.
Por que o senhor considera o imposto indispensável? Se todo mundo faz o diagnóstico de que a digitalização está mudando os relacionamentos sociais, as relações de trabalho, por que ainda continuamos isolando o sistema tributário dessa discussão e não adotamos um imposto eletrônico como esse? Vamos taxar a ilegalidade — contrabando, roubo de carga, tráfico de armas e drogas. Essas atividades ilegais existem e estão fora do sistema tributário. Temos 40% do PIB, de toda a economia brasileira, sendo sonegado. A Receita estima uma arrecadação adicional em torno de 310 bilhões de reais, o que representa toda a arrecadação de PIS e Cofins. Se a sociedade for colocada à frente desse cenário, tenho certeza de que vai optar pelo imposto sobre pagamentos.
“Uma vez o presidente me disse que, se eu conseguisse convencer a população de que a CPMF é boa, ele a apoiaria. Afirmou apenas que temia a repercussão negativa”
Como o senhor vê as propostas de reforma em tramitação no Congresso? Se você me perguntar se estou confiante na aprovação de uma reforma sem cobrança sobre pagamentos, cravo: é burrice continuar fazendo a mesma coisa e esperar resultados diferentes. A PEC 45, de autoria de Bernard Appy, é o mesmo projeto apresentado em 1995, discutido, inclusive, quando eu estava no Congresso, e não se conseguiu aprová-lo nunca.
Existe o risco de a reforma em discussão no governo mais atrapalhar do que ajudar? Se continuar o veto ao imposto sobre a movimentação financeira, não teremos reforma, mas ajustes pontuais — e o país precisa de uma reforma tributária. Não é viável um IVA (imposto sobre o valor agregado) com alíquota maior que 30%, que é o que vai acontecer caso a PEC 45 passe como está hoje. Acredito que o bom-senso vá prevalecer. Acho que nunca tivemos um momento tão propício para grandes reformas. O presidente Bolsonaro, certo ou errado, bem ou mal, sem dúvida alguma encarnou uma insatisfação da sociedade. Se ele não se apresentar como uma liderança política para as mudanças, induzindo a sociedade a apoiá-lo, com a capacidade de mobilização que tem, vamos perder essa oportunidade.
Como driblar a impopularidade da CPMF? Tenho o resultado de diferentes pesquisas que dizem que esse tipo de imposto não é impopular. Em 2007, no auge da discussão sobre a extinção da CPMF, uma pesquisa do Cepac (Centro de Pesquisa e Comunicação) mostrou que 78% da população era favorável a um imposto único, cobrado sobre os pagamentos. Entre os que conhecem, a aprovação é alta. Uma vez o presidente me disse que, se eu conseguisse convencer a população de que a CPMF é um bom tributo, ele a apoiaria. Afirmou apenas que temia a repercussão negativa. Por isso considero meu maior fracasso a publicidade. Ninguém nunca desautorizou meus trabalhos, mas fui um fracasso como comunicador. Fui alvo dos lobbies, de setores que se sentem ameaçados por um sistema automático, que não exige uma única linha de declaração, que não gera ações na Justiça. O imposto representa uma perda de poder gigantesca. É um tributo que tira poder da classe política — ela perde poder de barganha.
O senhor sofreu resistência também do presidente da Câmara, Rodrigo Maia. Por quê? Porque publiquei no Twitter que o Paulo Guedes era uma pessoa preparada e que não precisava do apoio político de ninguém para impor suas ideias. Isso foi interpretado pelo Maia como uma crítica à classe política, um desdém. Não foi isso. Quis dizer que o Guedes dialoga tão bem com a oposição que ele não precisa de apoio da base do governo. Além disso, Maia vem do setor financeiro e tem um contato profundo, que antecede o governo, com o Bernard Appy. Ele nunca entrou nessa discussão mais profundamente. Ele crê que o projeto do Appy é o mais correto.
A indicação de Vanessa Canado, que é do grupo de Appy, para o Ministério da Economia teve ingerência dele? Não tenho dúvida. Interpreto a chegada dela como uma tentativa de Guedes de aproximar as visões do governo às do Legislativo, que não são antagônicas. Nós estávamos a duas semanas de entregar a reforma tributária, mas já se passaram cinco meses desde que fui exonerado e não acharam caminho intermediário. Nada que pudesse substituir meu projeto.
“O governo entendia que os vazamentos que estavam acontecendo, como no caso de Gilmar Mendes, eram fruto da promiscuidade entre Ministério Público e Receita”
A independência da Receita Federal para investigar o senador Flávio Bolsonaro, além da própria família do presidente, pesou na sua demissão? Não. Eu enfrentei essas dificuldades. Foram crises muito sérias. O presidente, sem dúvida, se preocupava com essa investigação que envolve o senador Flávio Bolsonaro e os familiares dele. Cheguei a discutir em vários momentos essas questões da Receita com o presidente — sobre reforma tributária, houve menos encontros. Em momento algum Bolsonaro solicitou qualquer coisa que eu não me sentisse confortável em ouvir e analisar. Ele fez sugestões, tirou dúvidas. Mas não posso dizer que me pressionou.
Que tipos de sugestão? O presidente sugeriu algumas substituições de quadros da Receita. O governo entendia que os vazamentos que estavam acontecendo, como no caso do ministro Gilmar Mendes ou no da esposa do ministro Dias Toffoli — vazamentos que chegaram a membros do STJ (Superior Tribunal de Justiça) e do TCU (Tribunal de Contas da União) —, eram oriundos de uma promiscuidade entre um Ministério Público Federal altamente politizado e membros da Receita. Surgiu a suspeita de que eu não estaria controlando esse relacionamento espúrio. Não concordei. Disse que confiava em quem estava lá. Não fiz as substituições.
O presidente foi eleito com um discurso voltado para o combate à corrupção. Por que o desconforto com investigações da Receita? Ele acha que é alvo de perseguição. Logo no começo da gestão, identificamos a origem dos vazamentos na Receita e acessos indevidos a dados dele e de familiares. Com Bolsonaro nunca tive o problema que o ministro Sergio Moro enfrentou no comando da Polícia Federal, ou seja, um pedido, uma ingerência, para determinada nomeação. Ele sempre discutia, mas não houve pressão indevida.
Publicado em VEJA de 5 de fevereiro de 2020, edição nº 2672
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