RIO – Dorival Caymmi descobriu seu encanto com o mar através da música do mar. Deitado na cama, de madrugada, ouvia o barulho das ondas batendo nas pedras, em Salvador, atento à mudança do som conforme a maré ia enchendo e esvaziando. Contada pela voz do próprio, a revelação abre uma janela para a alma do artista e do homem, sua sensibilidade, o oceano que carregava dentro de si e que, transformado em canção, banhou (e banha) o Brasil. A fala é um dos luminosos momentos da entrevista inédita feita em 1998 sobre a qual se apoia “Dorival Caymmi: um homem de afetos”, de Daniela Broitman (“Marcelo Yuka no caminho das setas”).
O documentário — que estreia no festival É Tudo Verdade, com exibição nesta terça em São Paulo e sexta e sábado no Rio — mira exatamente no universo íntimo do “Buda nagô”, segundo definição de Gilberto Gil lembrada no filme. O homem que — como um ancião oriental ou uma criança negra dando cambalhotas na areia do Rio Vermelho — lança para si e para o mundo questões como “qual é a forma do vento?”.
— Queria mostrar esse ser humano de ar ameno, como Gil diz no filme — conta a diretora. — Caymmi tem biografia, 500 milhões de matérias de jornal, é um homem muito querido e conhecido. Me interessava quem era ele por trás das lentes, dos palcos. Por isso fui atrás de material inédito, até saber dessa entrevista de 1998 gravada para um filme que nunca foi feito. Passei um ano procurando.
A entrevista foi um ponto de partida para o roteiro, que inclui depoimentos dos filhos Nana, Dori e Danilo, dos compositores Caetano Veloso e Gilberto Gil, do produtor Guto Burgos e da cozinheira Cristiane de Oliveira, que trabalhava em sua casa.
— A Nana conta que Stella
(Maris, mulher de Dorival)
dizia que Caymmi era artista da porta pra fora, porque da porta para dentro ele era marido e pai. Eu queria esse Caymmi da porta pra dentro, não só de casa, mas da alma dele. Como ele olhava coisas simples como o vento, o barulho do mar e fazia isso virar poesia.
A certa altura do filme, Caymmi fala do impacto que teve numa ocasião ao olhar para a composição visual que faziam coqueiral, areal e mar lado a lado: “Fiquei tão fascinado que vi o mistério”. A seguir, listamos fragmentos desse mistério que o filme procura tocar.
‘Galã rústico’
Aos 84 anos, Caymmi brinca com a vaidade ao questionar se está bonito para a gravação da entrevista: “Estou com a impressão de que estou um pouco idoso”. Na sequência, se compara na juventude ao galã Rodolfo Valentino (noutro momento, Danilo diz que o pai se definia como um “galã rústico”), reconhece que carrega “uma dose natural de simpatia” e arremata com uma das frases mais lindas do filme: “Aprendi a gostar de mim gostando dos outros”.
— Estamos vivendo um momento tão difícil no país. E Caymmi traz o afeto — diz Daniela. — Sempre fiz filmes sobre direitos humanos, justiça social, o filme do Yuka traz isso. Mas Caymmi flutua acima disso tudo. Ele vivia muito seu universo, olhava pra dentro. Agora é um bom momento de olhar pra dentro, dialogar com sua luz e sua sombra.
Dignidade da preguiça
Ao sentar para a entrevista, Caymmi diz: “Sentar é um gesto de grande dignidade. Exalta a preguiça”. E relata um diálogo com um amigo: “O que você está fazendo? Nada. E você? Nada”. E destaca que ele nem acrescenta o “também” à sua resposta para não sobrecarregar o “nada”.
‘Você se astreve?’
Não são poucas as histórias de Caymmi que tratam da força sedutora que ele exercia sobre as mulheres. No filme, ele imprime graça a algumas delas, como o caso da vizinha que o chamou à sua casa (“Você se
astreve
a subir aqui?”), da qual depois teve que sair fugido com medo do marido (“Ninguém se chama Guimarães impunemente”).
‘Qual o seu tom?’
Nana conta que ela e o pai ficaram sem se falar por sete anos depois que ela se separou de seu primeiro marido (“Lugar de mulher é ao lado do marido”, disse Dorival, que não aceitava a ideia de divórcio). As pazes foram seladas quando ele mandou chamá-la na TV Tupi. Quando ela chegou, ele perguntou: “qual o seu tom?”. Ela (“eu era danada”) disse: “Qualquer um, o que você puxar eu vou atrás”.
Cheiro da Bahia
Guto lembra que levou Caymmi, já no fim da vida, para uma homenagem na Bahia. Andando pela cidade, já enxergando muito pouco, ele comentou a certa altura: “Estamos na Ribeira”. Reconheceu o bairro pelo cheiro.
‘Eu quero partir’
Dorival e Stella morreram com a distância de 11 dias. Ao perceber que Stella não voltaria do hospital para casa, ele disse para a cozinheira Cristiane: “Não quero ficar aqui sem a Stella, quero partir”. Ao ir para o hospital, Stella já havia dito para Cristiane que não voltaria e pediu que ela não deixasse Caymmi sozinho, que ficasse com ele até o fim. Ele morreu na cama, de mãos dadas com Cristiane.
— Procurei Cristiane muito tempo, mas ninguém tinha seu contato. Encontrei-a filmando em Pequeri
(em Minas, onde Caymmi tinha casa)
— conta Daniela. — Na verdade, ela nos encontrou. Ao passar pela equipe, e perguntou o que estávamos fazendo. A gente brincava que o Pai Dorival estava nos ajudando, tivemos várias bênçãos assim.
Onde:
Estação Net Botafogo — R. Voluntários da Pátria, 88 (2226-1988).
Quando:
Sexta, às 20h30m (sala 1); sábado, às 15h (sala 3).
Quanto:
Grátis.
Classificação:
Livre.