Poucos momentos da história guardam paralelos com a grave crise em que o planeta está mergulhado. Além dos gigantescos problemas de saúde, o confinamento praticamente compulsório provocado pela Covid-19 jogou na lona a economia global. Como se não bastasse, instabilidades sociais se avolumam, gerando ainda mais inquietação em um cenário já incomodamente tenso. Os economistas — e aqui não importa a doutrina que seguem — consentem que o momento exige expansão dos gastos públicos. Isso vem sendo feito pela esmagadora maioria dos países. No Brasil, as despesas criadas para combater o estado de catatonia causado pela crise já somam 320 bilhões de reais. Quando se juntam os adiamentos e isenções de impostos associados a empréstimos viabilizados por ações do Banco Central, o volume de recursos supera 1 trilhão de reais. No entanto, não é quanto o governo gasta ou deixa de gastar que fará um país sair vitorioso. O austríaco Peter Drucker (1909-2005), tido como um dos maiores gurus de negócios do século XX, preconizava que não é a capacidade de solução dos problemas que dá a dimensão dos bons resultados no combate a uma crise, mas sim a exploração de oportunidades que ela oferece. Até agora, o governo brasileiro tem se empenhado apenas em resolver os problemas, sendo que as perspectivas para alcançar benefícios mais duradouros despontam no horizonte.
Entender os mecanismos de financiamento que prometem tirar o Brasil da crise econômica é tarefa de alta complexidade. Para isso é preciso avaliar detalhes dos gastos extraordinários destinados a salvar setores, segurar empregos e garantir uma renda mínima à população. É fato consumado que a carga tributária do país, que alcançou o recorde de 33,17% do PIB em 2019, não comporta o aumento da dívida advinda dessas novas despesas — ainda que sejam temporárias. A dívida superará 90% do produto interno bruto no fim deste ano, segundo cálculos da Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado Federal. Em um primeiro momento, a maior parte desses recursos virá da venda de títulos públicos a investidores, mas isso precisará ser pago no futuro. Em maior ou menor medida, todos os brasileiros precisarão arcar com um volume maior de impostos para estancar a sangria fiscal provocada pela pandemia.
Quem perdeu o emprego ou foi obrigado a fechar seu negócio sentiu na pele de forma dramática o que todo o país sentirá nos próximos meses: o Brasil sairá mais pobre e mais endividado do que entrou na pandemia. Isso pode ser exemplificado pelos dispêndios já definidos para mitigar os efeitos do coronavírus sobre a economia. O total de 152,6 bilhões de reais gastos por meio do auxílio emergencial, por exemplo, será repartido por todos os contribuintes. Para evitar que todo o custo da crise sanitária recaia diretamente sobre o Tesouro, parte dos juros pagos pelo Banco Central ao governo financiará os auxílios a estados e municípios, que somam 60 bilhões. O mesmo expediente está sendo adotado para financiar 51,6 bilhões de reais referentes às medidas provisórias criadas para garantir a manutenção do emprego por meio da redução das jornadas de trabalho e dos salários. Por outro lado, o empréstimo de 15,4 bilhões de reais concedido pelo BNDES e por outros bancos para cobrir as perdas de receita das distribuidoras de energia será custeado pelos consumidores de eletricidade no futuro. Empresas de outros setores que acorrem aos cofres públicos em busca de socorro também repassarão a conta a seus clientes. É o caso das companhias aéreas Azul, Gol e Latam, que receberão do BNDES empréstimos de 2,4 bilhões de reais cada uma. Apenas os investimentos em saúde, que somam, 61,2 bilhões de reais, tiveram uma solução mais criativa. Apesar de impostos que incidem sobre as folhas de pagamentos e sobre lucros das empresas terem sido usados para compor as receitas necessárias, parte dos recursos virá dos pagamentos de outorga de novas concessões e das multas aplicadas pela lei anticorrupção.
O histórico brasileiro de crises internas, entre elas a controversa condução do combate à Covid-19 pelo governo Jair Bolsonaro, tem alarmado investidores internacionais e transformou o país em uma opção de risco. Por isso, manter bons indicadores fiscais tornou-se crucial. Neste momento, a equipe econômica, comandada pelo ministro Paulo Guedes, busca uma solução para manter de pé as contas públicas. Na mesa do secretário de Política Econômica, Adolfo Sachsida, a proposta para ressuscitar a controversa CPMF está pronta. O projeto estabelece uma alíquota de 0,3% sobre toda movimentação financeira. No Congresso, o pensamento não é muito diferente. Está para ser votado no Senado o aumento da contribuição social sobre o lucro líquido (CSLL) cobrada dos bancos, de 25% para 50%. O projeto, costurado pelos senadores Weverton Rocha (PDT-MA) e Tasso Jereissati (PSDB-CE), fundamenta-se no raciocínio de que as instituições bancárias precisam contribuir de forma mais substancial para a superação da crise. Em paralelo, mais de uma dezena de projetos versa sobre a tributação de grandes fortunas e de dividendos. Devido ao mal-estar que tais assuntos provocam, o secretário do Tesouro, Mansueto Almeida, afirmou que, em um primeiro momento, o governo não defende aumento de tributos nem a criação de um imposto nos moldes da CPMF. Trata-se de um claro exercício retórico, porque as finanças governamentais vão exigir aumento da carga tributária. “Não há muitas alternativas”, esclarece o economista Luiz Carlos Mendonça de Barros. “Há uma guerra a se lutar e uma guerra a se pagar. É preciso que comecemos a discutir já como fazer para financiá-la.”
Para ganhar tempo, uma das principais alternativas a ser adotadas por Paulo Guedes a fim de não aumentar impostos será antecipar os lucros conseguidos pelo Banco Central (BC) com a desvalorização do real neste ano, algo próximo de 500 bilhões de reais. Toda essa dinheirama, que deveria entrar nos cofres do governo no fim de 2020, será depositada no fim deste mês. Porém, trata-se de mais um caso da metáfora do cobertor curto, pois não é uma solução definitiva. E, entre os economistas, não são poucos os que acreditam que 2021 será ainda mais difícil que 2020. “Mesmo que medidas tributárias sejam tomadas, não surtirão efeito na velocidade necessária”, avalia Felipe Salto, diretor do IFI.
Apesar do cenário pessimista, o governo tem a chance de explorar as oportunidades no combate à crise, como preconiza o aforismo do austríaco Drucker, citado no início desta reportagem. A gravidade da situação que o país deve enfrentar oferece condições propícias para o Planalto desengavetar as reformas estruturais já prometidas pelo ministro Paulo Guedes. Algumas das iniciativas formuladas em 2019 podem fazer com que o Brasil saia da crise com uma estrutura de gastos federais mais enxuta do que entrou. A PEC Emergencial, enviada ao Senado em setembro, estabelece gatilhos que permitem aos gestores públicos cortar gastos, como salários do funcionalismo, diante de situações de desarranjo fiscal. A PEC Administrativa, por sua vez, permite a reestruturação das carreiras de servidores de modo a acomodar melhor os salários aos orçamentos federal, estaduais e municipais. “Acompanhamos as discussões no Congresso e vemos apenas interesse em aumentar impostos, mas pouco se fala da redução da máquina pública”, afirma o advogado Luiz Gustavo Bichara. Além disso, qualquer discussão sobre aumento de tributos é contraproducente se não levar em conta as propostas de reforma tributária. Tanto a PEC 45, que tramita na Câmara, quanto a PEC 110, no Senado, criam um ambiente regulatório muito mais favorável para a retomada econômica do que a manutenção do caos tributário atual. Mesmo que haja um aumento da carga tributária, os benefícios da implementação de um sistema mais simples e lógico podem sobrepujar o efeito cáustico da elevação de impostos. É uma maneira de transformar uma conta que já sairá salgada para todos os brasileiros em um esforço racional e de impacto mais duradouro.
Publicado em VEJA de 10 de junho de 2020, edição nº 2690
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