Mais uma vez, o Rio mergulhou no caos após uma tempestade. E não foi um caos qualquer. Foi um daqueles para ficar registrado na memória de uma cidade que, infelizmente, guarda muitas — e profundas — cicatrizes deixadas pelas chuvas. O temporal da noite de segunda, que se prolongou pela madrugada e manhã de terça, matou dez pessoas (até o início da noite de ontem) e expôs um município totalmente despreparado. Como sempre. Nas zonas Sul, Norte e Oeste, os principais corredores de tráfego se tornaram intransitáveis. Pior que isso: adultos, crianças e idosos ficaram ilhados em ônibus, carros, estações de metrô e BRT, sem ter o que fazer. A não ser esperar, ou enfrentar a enxurrada, com suas perigosas correntezas, alguns caminhando quilômetros, com água pela cintura, para tentar chegar em casa ou a algum lugar seguro.
Mais uma vez, o temporal era previsto. Desde a semana passada, sabia-se que, após dias de intenso calor, com sensação térmica de até 40 graus, chegaria uma frente fria no início desta semana que poderia provocar tempestades. A própria Defesa Civil emitiu boletins, alertando para ocorrência de chuva moderada a forte. Um deles por volta das 14h30, e outro em torno das 19h45, quando a enxurrada já castigava bairros do Rio. E o que a prefeitura fez para pelo menos reduzir os impactos de um fenômeno previsível? Praticamente nada.
Mais uma vez, o que se viu foi um show de incompetência, salvo honrosas exceções, como os bombeiros. Cariocas que trabalham e pagam seus impostos foram largados à própria sorte. Todo mundo sabe que a Rua Jardim Botânico vira um rio quando chove um pouco mais forte. Alguém apareceu lá para interromper o tráfego e evitar que as pessoas ficassem ilhadas? Não. Alguém viu agentes da prefeitura, operadores de trânsito, guardas municipais para ao menos atenuar o caos? Não. O Rebouças ficou engarrafado. Vários ventiladores não estavam funcionando, deixando o ar irrespirável. Pessoas chegaram a passar mal. Havia um plano de contingência? Pelo visto, não. Igrejas e lojas que ofereceram abrigo aos “ilhados” fizeram mais que o poder público. A Avenida Niemeyer, onde um deslizamento soterrou um ônibus matando duas pessoas em fevereiro, só foi fechada quando já chovia torrencialmente. Chuva, aliás, que levou mais um trecho da Ciclovia Tim Maia, que, há menos de um mês, a Geo Rio recomendara reabrir.
Mais uma vez, o prefeito Marcelo Crivella usou a mesma ladainha. “Foi uma chuva atípica”, disse ele à TV Globo num pronunciamento tardio. Choveu em 24 horas o dobro da quantidade prevista para todo o mês de abril. Não há dúvidas de que foram índices excepcionais, principalmente em regiões como o Jardim Botânico. Mas, embora ainda tenha quem não acredite, o aquecimento global e as mudanças climáticas são uma realidade. Fenômenos extremos estão cada vez mais frequentes, no Rio, no Brasil, em todo o mundo. É inexorável. Daí a importância da prevenção, que prefeito e governador parecem desconhecer. A cidade está largada. Galerias entupidas, lixo nas ruas, corte nas verbas de combate a enchentes e contenção de encostas, falta de investimentos. Tudo isso só agrava a situação. Anteontem, por volta de 23h30, quando a cidade estava em estágio de crise e os cariocas enfrentavam um caos poucas vezes visto, Crivella disse que havia “mais de 20 homens nas ruas”. Inacreditável. Na noite de ontem, o prefeito admitiu ao “RJ-TV” que a prefeitura demorou a agir.
Mais uma vez, registram-se mortes por deslizamentos de terra — na última chuva, todos os sete óbitos foram causados por quedas de barreira. Desta vez, três pessoas morreram em desabamento no Morro da Babilônia, no Leme, onde as sirenes não tocaram. As moradias em área de risco são um problema histórico do Rio. Cada prefeito trata a questão como se fosse responsabilidade apenas do anterior. É dele também. É preciso tomar decisões estratégicas e suprapartidárias, para que essas pessoas possam ser removidas ao longo de vários mandatos.
Mais uma vez, o Rio ficou refém das chuvas. Sabe-se que a topografia da cidade, que cresceu espremida entre as montanhas e o mar, contribui para agravar esses fenômenos. Mas, depois de tantas tragédias, como as de 1966 e 1988, que arrasaram a capital fluminense, esperava-se que a cidade tivesse aprendido alguma coisa. Pelo jeito, não. Mais um verão passou, e a prefeitura não entregou as obras do Rio Joana, importantes para atenuar o impacto das cheias na Grande Tijuca. O governador Wilson Witzel se manteve praticamente alheio ao temporal — o estado tem muito a fazer em obras de prevenção a enchentes. E o prefeito Marcelo Crivella parece mais empenhado em salvar a própria pele no processo de impeachment aberto pela Câmara no último dia 2.
Mais uma vez, o carioca paga a conta.