A chuvarada que caiu na segunda-feira (10) jogou luz sobre uma pergunta feita a cada verão pelos paulistanos: por que nossa cidade nunca está preparada para os temporais? O desta semana atingiu a marca de 114 milímetros, o maior volume para o mês desde 1983, e se concentrou principalmente na (mais verde, rica e permeável) Zona Oeste. Com os rios Tietê e Pinheiros transbordados como fazia anos não se via, suas marginais impermeáveis foram o epicentro dos problemas.
O Corpo de Bombeiros recebeu mais de 7 000 chamados e foi registrada a queda de 182 árvores. Centenas de pessoas ficaram até doze horas ilhadas esperando a água baixar. Na Ceagesp, o prejuízo causado pode chegar a 20 milhões de reais. Ali, 7 000 toneladas de alimentos, como frutas, legumes e pescados, deixaram de ser comercializadas. O prefeito Bruno Covas e o governador João Doria preferem atribuir os transtornos do aguaceiro em São Paulo a São Pedro. “Em três horas choveu praticamente metade do esperado para o mês”, afirma Covas, que promete entregar cinco piscinões até o fim do ano, fora os oito já concluídos. “As chuvas têm aumentado nos últimos anos por causa da mudança climática”, disse Doria, pela internet, durante viagem aos Emirados Árabes Unidos.
Enquanto tentam justificar as causas das chuvas e prometem novas obras de contenção, os dois gestores tucanos apresentam queda nos investimentos em obras contra enchentes. Na cidade, nos últimos cinco anos, as gestões do PT e do PSDB deixaram de gastar 2,7 bilhões de reais que estavam empenhados para controlar as cheias, segundo o jornal O Estado de S. Paulo. No estado, o programa de engenharia hídrica, combate a enchente e saneamento previa despesas de 3,8 bilhões de reais, mas empenhou 1,1 bilhão de reais. “A culpa não pode ser da chuva, mas dos governos, em especial o do estado, que não executaram o que estava previsto”, afirma o deputado estadual Paulo Fiorilo (PT), autor de um levantamento dos recentes orçamentos do Palácio dos Bandeirantes.
Para o arquiteto e urbanista Valter Caldana, professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, é preciso repensar as marginais, hoje as duas vias mais importantes da capital. “Não dá mais para termos uma autoestrada cortando a cidade”, afirma. “O que devemos deixar para o futuro é um rio integrado à cidade, vivo e com suas laterais urbanizadas. ”Desde que seus três principais rios — Tietê, Pinheiros e Tamanduateí — começaram a sofrer processos de retificação (sem falar nas centenas de córregos canalizados), a partir do século XIX, suas águas se voltaram para as áreas asfaltadas, onde antes existiam várzeas. A diferença entre as primeiras enchentes e a mais recente é que um século e meio atrás a cidade possuía apenas 30 000 habitantes; hoje há 12,2 milhões de paulistanos, o que explica a elevação das dimensões dos transtornos. Fotos como a da enchente de 1965, porém, comprovam que a gravidade do problema não vem de hoje.
No ano passado, a região do Ipiranga, na Zona Sul, foi a mais castigada pela chuva do verão. Na ocasião, vários edifícios tiveram seu subsolo alagado, o que causou prejuízos que perduram até hoje. “Faz um ano que estamos sem garagem”, afirma o empresário Fernando Martins Teixeira, 38, morador de um condomínio com mais de 200 apartamentos na Rua Cônego Januário. “Meu pai foi dado como morto, pois estava no estacionamento subterrâneo e a água quase chegou ao teto. Por sorte ele conseguiu subir em um carro e se salvou.”
Sem poder entrar em casa por mais de dois meses, pois o edifício foi interditado, a família Teixeira, que perdeu quatro carros na enchente, se amontoou em uma quitinete de 38 metros quadrados até poder voltar para casa. “Desde então estamos pagando 350 reais por mês de estacionamento para cada automóvel”, queixa-se o empresário. Para esses e outros moradores, a gestão de Bruno Covas prometeu isenção no IPTU de 2020, mas muitos contribuintes dizem que o pedido foi negado ou simplesmente ignorado.
“Fui à Subprefeitura do Ipiranga uma semana depois da enchente, preenchi um requerimento, mas recebi o carnê com o valor cheio, como se nada tivesse acontecido”, afirma o engenheiro-eletricista Luiz Alberto Novaes Batista. A casa dele, localizada nas proximidades da Avenida Dom Pedro I, foi inundada em 15 de março, e ele perdeu equipamentos elétricos, tapetes e diversos móveis. “As portas ficaram empenadas após o contato com a água e estragaram”, queixa-se. Procurada, a prefeitura se limitou a declarar que recebeu 1010 pedidos de isenção — não respondeu quantas pessoas foram beneficiadas. O vereador Dalton Silvano (DEM), que acompanhou o processo desde o início, solicitou a impugnação dos boletos e diz que poderá recorrer ao Ministério Público caso o impasse não seja resolvido. “Fui à Secretaria da Fazenda em dezembro e um auditor me confessou que não conseguiu processar todos os dados.”
Enquanto sobram reclamações pela falta de atenção com os prejudicados pela chuva do ano passado, há críticas a programas em andamento que poderiam amenizar as consequências das enchentes que virão no futuro. Anunciada em julho do ano passado, a reforma de 1,6 milhão de metros quadrados de calçadas seria uma boa oportunidade de tornar a cidade menos impermeável. Esses passeios poderiam ter uma faixa de terra ou grama, o que ajudaria na absorção da água. Mas as primeiras obras, como na Rua Diogo de Faria, na Vila Mariana, ignoraram a prática.
As calçadas de concreto serão feitas também em bairros como Mooca, Jabaquara, Capela do Socorro, Sapopemba, Guaianases, Casa Verde e Butantã. O custo do projeto é de 200 milhões de reais. “As calçadas cimentadas do prefeito Bruno Covas são o anticlímax do combate às enchentes na capital”, afirma o vereador Gilberto Natalini (PV). “São Paulo não é resiliente para receber as chuvas violentas. Para piorar, as principais propostas do prefeito e do governador são para piscinão, inclusive alguns em cima de área verde.”
Em artigo exclusivo para VEJA SÃO PAULO, Philip Yang, mestre em administração pública pela Universidade Harvard, Milton Braga, sócio-fundador do MMBB, e Carlo Ratti, diretor do Senseable City Lab, do MIT, ressaltam que as soluções passam por uma mudança de paradigma: “O incentivo ao aumento de todo tipo de jardins, o fomento da agricultura urbana e o estímulo ao uso de pavimentos e revestimentos porosos podem transformar a cidade numa esponja que aliviaria os sistemas de drenagem e reduziria a vazão para os rios”. O arquiteto e urbanista Washington Fajardo propõe outra mudança: “Sem responsabilização dos gestores, nada mudará”.
Cinco medidas para deixar São Paulo mais permeável
Calçadas verdes. Em vez de concretar os passeios, como tem feito, a prefeitura poderia destinar trechos para receber grama e ajudar na drenagem da água da chuva. As gestões tucanas de Doria e Covas priorizaram o recapeamento do programa Asfalto Novo.
Manutenção de córregos. Paralisado em 2014, na gestão Haddad (PT), o Projeto Córrego Limpo, em parceria com a Sabesp, transformou 148 rios.
Parques lineares. Dos 107 parques municipais, 23 são lineares. Eles são construídos ao longo de rios e ajudam a recuperar fundos de vale.
Preservação das matas. Desde 2014, a cidade perdeu 500 000 árvores por causa do desmatamento. O caso foi denunciado pelo vereador Gilberto Natalini (PV). “As matas estão sendo dizimadas por quadrilhas”, afirma.
Coleta de água da chuva. Em vez de ligar a calha do telhado na rede de esgoto, é possível direcioná-la para o próprio terreno e reutilizar a água para lavar o quintal, por exemplo.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 19 de fevereiro de 2020, edição nº 2674.
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