Sistemas tributários não são meras técnicas de extração de renda da sociedade para financiar o bem comum, mas escolhas políticas, balizadas por princípios constitucionais, que encerram conflitos de razão e de interesse. É inevitável, portanto, que sejam imperfeitos. Mais que isso, ao longo do tempo, essas imperfeições se amplificam, em decorrência de mudanças no ambiente econômico, obsolescência das formas de extração, controvérsias conceituais, adoção de regimes especiais, entre outros. É nesse contexto que se inscrevem as reformas tributárias. Não como um evento, mas como um processo permanente. Uma proposta de reforma tributária deve estar centrada, com clareza, nos problemas que pretende enfrentar, dispensando chavões e dogmatismos. No debate sobre as soluções possíveis, a sociedade tem o direito de conhecer os respectivos custos e benefícios para que haja uma escolha consciente. Parodiando Ortega y Gasset, clareza é a cortesia do legislador para com o seu povo. Nas autodesignadas propostas de reforma tributária em tramitação no Congresso Nacional os problemas que se pretende resolver não estão adequadamente formulados. Tampouco são apresentadas simulações que permitam aquilatar as repercussões setoriais e os impactos sobre preços.
O projeto enviado pelo Executivo em julho ao Parlamento, especificamente, pretende criar uma Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS), fundindo Cofins e PIS. Alega-se, preliminarmente, a simplicidade como pretexto para essa fusão. Ocorre que, ressalvados casos muito especiais, aqueles tributos têm uma mesma legislação, além de documento de arrecadação único. A diferenciação se dá na destinação das receitas, por força de mandamentos constitucionais: a Cofins financia o orçamento da seguridade social e o PIS, o seguro-desemprego, o abono salarial e o BNDES. Na perspectiva estritamente tributária, fica evidente que se trata da fusão de dois tributos idênticos, por isso mesmo usualmente referidos como PIS/Cofins. Portanto, inaugura uma desnecessária controvérsia sobre a destinação dos recursos, inclusive em termos de possível inconstitucionalidade. Atualmente, todos os contribuintes optantes do regime do lucro presumido são tributados no regime cumulativo do PIS/Cofins. Essa opção se dá justamente pela simplicidade, porque o imposto devido é tão somente o produto de uma alíquota sobre o faturamento. Não há registro de litígio nesse modelo, nem queixa alguma de contribuinte quanto à complexidade. O artigo 11 do projeto que cria a CBS admite a coexistência de receitas que permitem a apropriação de créditos com as receitas que não permitem. Para solucionar as respectivas vinculações, prevê um método que consiste na “apropriação direta por meio de sistema de contabilidade de custos integrada e coordenada com a escrituração”. A opção contrasta com o vigente modelo, que se constitui de uma singela operação de multiplicar. Seria isso uma simplificação?
“Há problemas no PIS/Cofins, mas não se deve, como no dito popular, matar a vaca para acabar com o carrapato”
Curiosamente, o regime cumulativo do PIS/Cofins, que se pretende extinguir, tem a mesma natureza do modelo que inúmeros países da Europa estudam adotar para tributar serviços digitais, com o objetivo de prevenir a erosão das bases tributárias pelo deslocamento de lucros para paraísos fiscais. Quem sabe esse fato venha a mitigar nosso “complexo de vira-lata”. Afastada a pretensão de simplificar, ao menos em relação ao regime cumulativo, é preciso explorar as repercussões da proposta sobre margens e preços, ainda que não tenham sido disponibilizadas simulações. É evidente que atividades que têm poucos créditos a aproveitar seriam as mais impactadas, como serviços voltados para famílias: escolas, clínicas médicas, escritórios de profissionais liberais. Em decorrência dessa nova legislação, haveria inevitável aumento de preços desses serviços. Admitindo-se, como anunciado, que a carga tributária total permaneça constante, pode-se presumir que o aumento da tributação sobre serviços implique redução da tributação de bens. Por exemplo, haveria elevação da carga tributária da mensalidade escolar e redução na do automóvel de luxo. Há razoabilidade nisso? Ainda no campo dos serviços, o projeto prevê que os bancos teriam uma alíquota inferior à básica, porque têm poucos créditos a aproveitar. Faz sentido, mas por que só esse setor terá esse direito?
Dentro da discussão da tributação dos serviços, a equipe econômica alega, também, que a maioria das empresas de serviços se encontra no Simples. Pode ser verdadeiro. Esse entendimento, contudo, é também confissão de que as empresas que não se encontram no Simples serão penalizadas. Imagine a hipotética frase: o povo não deve se preocupar com a Covid-19, pois afinal apenas 5% dos infectados morrem. Esse raciocínio parece encerrar alguma perversidade. É claro que existem problemas no PIS/Cofins, como a equivocada interpretação dos direitos creditórios dos insumos no regime não cumulativo, a controvérsia sobre o conceito de receita e a utilização abusiva dos regimes especiais. Por que não se debruçar sobre esses problemas e elaborar soluções? O que não se deve, como no dito popular, é matar a vaca para acabar com o carrapato.
Há muitos outros problemas tributários, como a excessiva litigiosidade e insegurança jurídica, decorrentes de patologias do processo tributário, o burocratismo que estressa os custos, as irresolvidas indeterminações conceituais, entre outros. Nada disso, entretanto, supera a inoportunidade do debate sobre reforma tributária, quando estamos vivendo “uma crise como nenhuma outra, porque mais complexa, mais incerta e verdadeiramente global”, como afirmou Kristalina Georgieva, diretora-geral do FMI. São reais, no Brasil, as ameaças de aumento do desemprego e da pobreza, crise fiscal desproporcional sobretudo nos estados e municípios, problemas de toda ordem para empresas. O mundo está focalizado na crise, em suas diferentes dimensões. As soluções não serão fáceis e exigirão criatividade, flexibilidade, cooperação e sacrifício. A despeito desse dramático quadro, optamos por práticas diversionistas. É o negacionismo em estado puro.
* Everardo Maciel é consultor tributário e foi secretário da Receita Federal
Publicado em VEJA de 12 de agosto de 2020, edição nº 2699
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