Qual é, afinal, o papel do Estado quanto aos costumes de seus cidadãos? Uma visão liberal, que compartilho, é a de que o Estado só pode se intrometer no comportamento das pessoas quando houver claro risco de dano à coletividade ou a outras pessoas. Leia-se: quem chega ao poder deve tratar de governar e deixar que cuidemos de nossas vidas privadas.
Mas e se o governo não pensa assim e quer transformar em regra a sua moral e em padrão os seus ideais de costumes? E se uma parcela dos eleitores acredita que essa é mesmo a missão? Até onde pode ir o governo nesse campo?
A resposta está na Constituição Federal, a que o presidente jurou obediência. Pelo princípio da legalidade, ninguém pode ser obrigado a fazer ou a deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de uma lei aprovada pelo Congresso Nacional. A opção constitucional foi consciente: ao atribuir ao Parlamento, e não ao Executivo, o poder de limitar a liberdade das pessoas, a Carta impede que visões de quem exerça temporariamente o poder sejam unilateralmente impostas à coletividade. Apesar dos pesares, deputados e senadores representam as diferentes parcelas da sociedade, majoritárias e minoritárias, e apenas as percepções minimamente consensuais se tornarão leis e estarão legitimadas a limitar nossas ações.
E não é só. Mesmo o Congresso tem limites ao aprovar leis. Elas serão inconstitucionais se violarem princípios fundamentais como a laicidade do Estado e a igualdade de todos, independentemente de raça, sexo, identidade de gênero, orientação sexual ou religião.
É verdade que princípios constitucionais não são capazes de evitar episódios como o da constrangedora divulgação, pelo presidente da República, em nome da moralidade, de um vídeo pornográfico. Mas os cidadãos atentos, com apoio do Poder Judiciário, encontrarão na Constituição de 1988 uma defesa eficaz sempre que o presidente, seus ministros ou quaisquer subordinados, ao invés de governar, nos pretendam impor suas visões sobre costumes.
Marcelo Trindade é advogado e professor da PUC-Rio