O amanhecer após a primeira noite de funcionamento de bares e restaurantes no Rio durante a pandemia, nesta quinta, foi de ressaca. Não só como efeito do álcool ingerido, mas pela desmoralização de um suposto esforço coletivo para combater o coronavírus diante de tantas cenas de aglomerações nas calçadas, principalmente no Leblon, enquanto o estado sofre com mais de 10 mil óbitos na pandemia.
Para especialistas do comportamento humano, a situação comprova uma normatização e banalização das mortes, impulsionadas pela desinformação e negligência do poder público e inconsequência de um sentimento do indivíduo de desafiar autoridades.
Enquanto a Guarda Municipal e a Vigilância Sanitária prometeram aumentar a fiscalização nesse final de semana, donos de estabelecimentos se reuniram na manhã desta sexta e decidiram que precisam mudar suas imagens de “denunciados” para “denunciantes”, ou seja, auxiliar a prefeitura com denúncia de aglomeração na porta de seus bares.
Em reunião virtual organizada pela pelo Sindicato de Bares e Restaurantes do Rio (SindRio), que representa 10 mil bares e restaurantes da cidade, houve 180 participantes. A agenda era o esclarecimento de dúvidas sobre procedimentos de higiene e mudanças de decreto e legislação da prefeitura. Mas o ponto principal acabou sendo como evitar as aglomerações, e os consequentes prejuízos sanitários e econômicos para o setor.
— A tônica foi mudar nossa imagem. Precisamos passar de agente denunciado para agente denunciante — afirmou Alexandre Serrado, presidente do Polo Gastronômico do Jardim Oceânico, dono do Bar da Lapa e conselheiro do SindRio. — Acho que precisamos usar o disk aglomeração também. Se está tumultuando na porta dele, o comerciante tem que chamar a polícia, a prefeitura e mandar para a imprensa. E mostramos nosso interior, com o protocolo respeitado.
A noite de quinta foi de aglomerações pontuais. Regiões tipicamente boêmias, como a Lapa e o Buxixo, na Tijuca, não tiveram aglomeração. Por outro lado, houve muita gente em bares e calçadas na Rua Dias Ferreira, no Leblon, na Rua Hilario Gouveia, em Copacabana, e em vários bairros da Zona Oeste, como Recreio e Padre Miguel, onde, inclusive, um bar foi aberto com o nome “P172 Corona”.
Para Serrado, o problema no “Baixo Leblon”, como são chamados os bares da Rua Dias Ferreira e Praça Cazuza, foi intensificado pela venda de cervejas em bancas de jornais e camelôs. Ao longo da noite de quinta, muitas imagens de uma pequena multidão na região tomaram a internet. A Guarda Municipal esteve no local e pediu inclusive para alguns estabelecimentos fecharem mais cedo, de forma a evitar aglomerações nas calçadas, como foi o caso do Stuzzi e Belmonte. A Guarda, porém, informou que os bares não cometeram infrações.
— No Baixo Leblon, foi um camelódromo ao ar livre, e isso vai acontecer em outros lugares. Nós podemos parar de servir quem está em pé, mas não temos controle se a pessoa compra cerveja em outros locais, pois a calçada é espaço público — diz Serrado, que fechou três estabelecimentos durante a pandemia. — É muito triste a situação. A cidade está perdendo bares de gerações. Mas queremos reabrir de forma segura. Corremos risco grande, porque estamos renegociando fornecedores, reconvocando funcionários, investindo em higienização e, daqui a 10 dias, se a curva piorar, podemos ter que fechar de novo.
Em um dos vídeos que circulou na internet denunciando a aglomeração no Leblon, é possível ver os clientes do bar Boa Praça sem máscara. Flávio Sarahyba, um dos sócios do estabelecimento, se defendeu e disse que adotou todos os protocolos sanitários que podia, como trabalhar com 50% da capacidade, profissionais equipados, medição de temperatura na entrada, cujo acesso só é permitido a quem tiver com máscara.
— É muito delicado para mim. Eu posso pedir para eles usarem máscara dentro do estabelecimento, mas também entra a questão do carioca com cidadania e consciência. Por mais que eu condicione a entrada com máscara, muitos deles tiram quando estão do lado de dentro. É complicado — diz o empresário. — Eu não tenho como criar mais nenhum tipo de procedimento, porque eu já fiz tudo. A única coisa que falta é a insistência para o público usar máscara, que é isso que, a partir de agora, vamos aumentar o tom, mas é super complicado. É muito mais uma questão de consciência da população do que iniciativa minha.
De acordo com Sarahyba, o público aglomerado na área externa do bar, para fora do cercado, não estava consumindo no estabelecimento. Essas pessoas teriam comprado bebida na banca de jornal ou direto com vendedores ambulantes.
— As pessoas não podiam estar estimulando esse tipo de aglomeração agora. Se os bares e restaurantes não estivessem atendendo nas ruas, como é que as pessoas iam se aglomerar em frente aos bares? Elas ficam ali porque tem uma geladeira e cerveja gelada.
Especialistas comentam: ‘Banalização da morte’
Para o escritor e historiador — além de especialista de botequim — Luiz Antonio Simas, as aglomerações foram um “triunfo da insanidade”. Ele identifica uma mistura de sentimentos na explicação desse comportamento, que passa pela banalização da morte à negligência do poder público e desafio à autoridade.
— Primeiro o poder público abriu espaço para essas atitudes. A prefeitura e o governo ensaiaram uma quarentena, mas no fim vimos que o isolamento ocorreu só em partes da cidade. Já as pessoas se aglomeram por uma série de fatores, desde a pessoa que precisa trabalhar até a banalização da morte. A cidade, tristemente, aprendeu a banalizar tragédias. A Covid-19 foi banalizada e e normatizada pela sociedade, num movimento que não é inédito. Durante o Império, epidemias já eram banalizadas. Novamente vimos a falta de percepção coletiva.
Psicanalista da Sociedade de Psicanálise da Cidade do Rio, Lindinaura Canosa entende que as pessoas viveram como “ilhas” durante o isolamento, o que vai no oposto da natureza humana, e, por isso, cansaram. Mas, mais do que isso, ela enxerga, nas pessoas que se aglomeram atualmente, um sentimento de desafio à autoridade, como uma transgressão, mas que, na verdade, traz consequências contra sua própria saúde.
— Ontem foi como se houvesse um pai opressor que dizia que a pessoa não pode fazer nada. Aí hoje falaram que pode tudo. Então começaram a sair, contra uma suposta tirania e autoridade. Só que essa transgressão é um castigo próprio, que pode resultar na própria morte. É uma ideia imatura, inconsequente. Quando você vai para o bar de maneira inconsequente, você vai contra você, contra seu pai, e contra sua mãe. Uma resistência que se transforma em inconsequência — diz Lindinaura.
Para a presidente da Associação dos Moradores do Leblon, Evelyn Rosenzweig, as pessoas foram encorajadas pela desinformação que é disseminada durante a pandemia. Segundo ela, as cenas das ruas do bairro lotadas trouxeram um impacto muito negativo entre os moradores do bairro.
— É tanta desinformação circulando que a população acaba ficando descrente. Acho que houve falta de campanhas produtivas, educativas, de conscientização, que salvariam vidas. E, na internet, não vemos nem apenas fake news, mas também pessoas conceituadas que minimizam a necessidade de máscaras e medidas de distanciamento — afirma Evelyn, que, por outro lado, elogia a fiscalização da prefeitura, governo e PM. — Ontem, por exemplo, vimos que a Guarda Municipal atuou. Mas como vai se controlar tantas aglomerações num país como o nosso.
Crítica sobre falta de ajuda do governo
Dono da rede Belmonte, com nove unidades, Antonio Rodrigues faz uma comparação com as medidas tomadas em Portugal, onde mantém dois estabelecimentos, para criticar a falta de auxílio governamental no Brasil. Segundo ele, se houvesse uma linha de crédito consistente ele não abriria as portas nesse momento. Mas, diz que o aperto financeiro não permitiu esperar mais.
— Em Portugal, o governo pagou funcionários, deu linha de crédito, baseado em 50% de faturamento do último ano, e precisamos pagar só daqui a dois anos, com juro anual de 0.5%. Aí você dorme tranquilo, consegue pagar contas. Sabe que vai reabrir só quanto estiver todo mundo bem — diz Rodrigues, que concorda com a utilização das calçadas no Rio, mas defende extensão do horário de funcionamento. — Precisando fechar às 23h, todo mundo sai na mesma hora, acho melhor manter aberto até 0h, 1h, e assim o escoamento do público é gradual.
Também dono do Nova Capela, Rodrigues vê com preocupação a situação da Lapa, onde as ruas ainda estão vazias, pois dependem muito dos turistas e casas de show, explica. Enquanto isso, diz que consegue manter seus negócios se tiver pelo menos 40% do faturamento que possuía, utilizando as reservas financeiras.
Em Copacabana, o ponto de aglomeração de quinta foi o bar Pavão Azul, na Rua Hilário de Gouveia. O administrador Sérgio Santos reiterou que, na medida do possível dele, as medidas sanitárias foram cumpridas. Em uma foto, é possível ver a calçada do estabelecimento com pontos de aglomeração.
— Muito difícil, passamos, praticamente, quatro meses fechado. Pela nossa parte, não houve descumprimento. Estamos fornecendo alcóol em gel e todo mundo está trabalhando com máscara. O que aconteceu foi que muita gente estava há muito tempo sem se ver, então houve uma formação de grupinho, mas todos separados. Nas imagens, o que parece é que, em determinado momento, ficou parecendo estar muito cheio, mas na parte de dentro estava separado — diz o empresário, que acredita que as aglomerações vão dimuir nos próximos dias. — Acho que agora as pessoas vão ficar mais comedidas, porque antes estavam com saudade. O que eu notei foi uma rotatividade muito grande, as pessoas chegavam, ficavam um pouco e saíam.
Em nota, o SindRio afirmou que é “absolutamente contra a aglomeração de pessoas” e que o que se viu nesta quinta “não corresponde ao trabalho sério e comprometido de todos os empresários que abriram suas portas para receber seus clientes, dentro da legalidade, e com todos os protocolos ainda mais rígidos de higiene e de distanciamento”. O sindicato ainda diz que a classe “não pode ser prejudicada pela falta de cooperação de uma pequena parcela da população, estimulada ainda pela presença ilegal e maciça de ambulantes e bancas de jornal abertas vendendo cervejas sem qualquer fiscalização”.
Já a prefeitura prometeu intensificar a fiscalização nesse fim de semana, com a Guarda Municipal e Vigilância Sanitária. A Guarda Municipal disse que já registrou 843 infrações sanitárias entre os dias 5 e 30 de junho. Já a Vigilância Sanitária informou que já fiscalizou 5 mil estabelecimentos, o que resultou em 2.374 multas por funcionamento dos estabelecimentos em desacordo com as regras.
Boêmios da cidade alertam: ainda não é hora de voltar
A vontade de voltar a frequentar o bar não é exclusividade das pessoas que se aglomeraram no Leblon, nesta quinta. Boêmios pelos cantos da cidade contam que também não vêem a hora de pedir seu chope no balcão, mas alertam, ainda não sentem segurança para ficar bebendo na rua.
— A ansiedade é grande, mas por enquanto é melhor ficar em casa e se prevenir. — afirma o influenciador e especialista em bares Marcos Bonder, conhecido como “Bond Buteco”. — Não consigo entender porque tanta gente se aglomerou assim.
Para Bonder, o uso da calçada, como é feito na Europa, é uma boa ideia, mas é preciso ter consciência e respeito às regras.
— Como o comerciante não pode controlar a área pública sozinho, cabe às autoridades também orientar a população.
A imagem da Zona Sul carioca lotada em tempos de pandemia não foi agraváel para João Roberto Kelly, compositor de clássicos carnavalescos como “Cabeleira do Zezé” e conhecedor de diversos bares. Para ele, houve “desperdício de energia” e a alegria pode ser melhor aproveitada quando as notícias referentes ao controle da pandemia forem felizes.
— Acho que é muito cedo para essa volta aos bares. Achei excessivo (a volta). Aquela rua (a Dias Ferreira) ficou uma coisa inacreditável, não fui favorável a essa volta tão violenta — diz o pianista de 88 anos e morador de Copacabana. — Ao invés de ir para rua, comemorar nada, porque não tem nada para comemorar, temos que torcer para que as vacinas tenham um resultado positivo. A garotada tem que entender que ainda não chegou a hora. Não creio que no primeiro sinal todo mundo tenha que correr, pois o apressado come cru. Não quero tomar chope, quero tomar vacina.
O cineasta e tijucano Lucas Vinhas, frequentador do Bar do Momo e Bar do Pinto, não sente segurança em voltar aos bares nesse momento, pois, mesmo que os casos estejam decelerando, o patamar de óbitos ainda é muito alto. Ele enxerga, porém, um fator “carioca” no desrespeito às normas.
— O carioca é muito despojado. Mas, às vezes isso cai num lado negativo, que é não respeitar normas e recomendações, o que pode, na pandemia, trazer consequências muito perigosas. Infelizmente, sempre tive a sensação do Rio ser uma tragédia pronta no início do Coronavírus.
Empolgado com a energia acumulada em casa enquanto não pode voltar ao bar, Bond Buteco enviou um poema ao GLOBO, como forma de alerta aos boêmios:
“Como diz a Velha Guarda, canja de galinha e precaução não fazem mal a ninguém. Não adianta botar o burro na frente da carroça, tropeçar, cair e não conseguir levantar. Na hora da precaução é sempre bom esperar, porque devagar também é velocidade. Nesse momento de pandemia é melhor ficar em casa, fugindo do sereno, preservando a boemia. Vontade de voltar a frequentar não falta, mas como diz a Velha Guarda, é melhor esperar a poeira baixar e a pandemia passar”.
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