Criada há dezoito anos, uma política municipal prometia garantir mais habitação a preços acessíveis em áreas centrais da cidade — em vez de empurrar os mais pobres para as bordas da metrópole. Os resultados ainda são bastante limitados. As Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis) carimbaram terrenos, lotes, ocupação irregular, favelas, imóveis abandonados, entre outros, localizados em áreas dotadas de infraestrutura, para que abrigassem conjuntos habitacionais voltados à população de baixa e média rendas. Ao atingir a maioridade em 2020, o instrumento de política fundiária, incrementado no Plano Diretor de 2014, não alterou essa má distribuição. Dos 1.404 empreendimentos de Habitação de Interesse Social (HIS) e de Habitação de Mercado Popular (HMP) entregues nos últimos quatro anos (tanto os públicos quanto os privados), somente 91 estão localizados no centro expandido, o que equivale a apenas 6% do total. A média anual de unidades licenciadas para esse segmento em toda a capital paulista é de modestas 26.600. Enquanto isso, o déficit de habitações, que há dois anos era de 358.000, saltou para 369.000 moradias, uma alta de 3%, justamente no momento em que a necessidade de confinamento na pandemia escancarou a urgência de resolver a fragilidade da habitação de milhões de paulistanos. O cálculo do déficit leva em conta o número de moradias precárias, como favelas e cortiços.
“Surgiram restaurantes, mercados, mudou muito e valorizou o entorno.” – Samuel Amorim, corretor.
As Zeis estão pulverizadas em áreas que somam 177 quilômetros quadrados, a maioria esmagadora sem a utilização prevista. Se fossem agrupadas, caberiam nas regiões das sub-prefeituras de Pinheiros, Mooca, Ipiranga e Vila Mariana juntas. De sobra comportariam ainda mais 28 Parques Ibirapuera. Divididas em cinco categorias, as zonas especiais possuem na primeira parte um mapeamento de todas as favelas e moradias precárias na cidade. Na prática, servem para determinar uma marcação de território, evitando os despejos de décadas passadas. “As Zeis 1 são mais um levantamento do que uma proposta habitacional. Elas facilitam a urbanização de uma favela, que, sem esse instrumento, teria de seguir a Lei de Uso e Ocupação do Solo, algo que dificultaria ainda mais um processo de urbanização”, afirma o ex-vereador Nabil Bonduki. É o que ocorre com as favelas de Heliópolis e Paraisópolis, que estão demarcadas como Zeis 1. Em áreas nobres da cidade, há marcações em territórios na Vila Madalena (Favela do Mangue), no Itaim (Favela do Coliseu, que virará empreendimento habitacional para 272 famílias) e na Vila Leopoldina. Essa última enfrenta a resistência de moradores do bairro, contrários à construção de um conjunto habitacional. A obra tem o objetivo de abrigar os moradores das duas favelas que existem há cinco décadas ao lado da Ceagesp.
6% das Habitações de Interesse Social (HIS) e de Mercado Popular (HMP) entregues nos últimos quatro anos foram no centro expandido.
Na Barra Funda, onde há grande incidência de marcações (como também em Campos Elíseos, Liberdade, Luz, entre outros), são 179.265 metros quadrados de Zeis, dos quais menos de 10% foram readequados. Parte da demarcação ganhou empreendimentos para um mercado popular, mas de faixas de renda maiores, entre três e nove salários mínimos. É o caso da Rua Cônego Vicente Miguel Marino, próximo ao Viaduto Orlando Murgel, onde uma dezena de torres mudou a cara do pedaço, antes marcado por grandes galpões e muitos sobrados. Alguns anúncios imobiliários classificam o lugar como “Nova Higienópolis” — ainda que os muros e paredões dos novos condomínios não ajudem a vida de bairro, comum no “velho” Higienópolis. “Já foi uma grande transformação. Surgiram restaurantes, mercados, valorizou bastante o entorno”, conta Samuel Amorim, 33, corretor de imóveis que coordenou as vendas de parte dos apartamentos ainda na planta e que acabou se mudando também para o endereço.
A poucos quilômetros dali, na Avenida Rangel Pestana, no Brás, três empreendimentos para as faixas mais baixas de renda, financiados pelo programa Minha Casa Minha Vida, também provocaram mudanças. Nesses casos não foram para o entorno, já consolidado, mas para as mais de 500 famílias que se estabeleceram na região, muitas das quais oriundas de áreas de risco, favelas e cortiços. Dessas famílias, 245 estão no Condomínio Marisa Letícia, recém-inaugurado. Há sete meses vivendo em um apartamento de 42 metros quadrados, a costureira Rita de Almeida, 64, se mudou para o local, com o marido, após quatro décadas morando de favor em um terreno na Vila Formosa (Zona Leste), pertencente a seus pais. “Passei a vida toda buscando um cantinho só meu. Meu sonho era em uma área central. Nem precisava ser tão colado ao centro. No Belém já bastava”, comemora Rita, que paga 104 reais por mês para a Caixa Econômica Federal, por um prazo de dez anos. No Marisa Letícia (em homenagem à esposa falecida do ex-presidente Lula), cujo valor mensal do condomínio é de 156 reais, uma das prioridades é manter a ordem. “É só colocar regras que o pessoal respeita. Não é porque vivemos em uma moradia popular que as pessoas sairão do eixo.” Desde março, quando a pandemia provocada pelo coronavírus mudou a rotina do país, nenhum morador se contaminou, conta a moradora.
369.000 é o déficit habitacional na cidade de São Paulo, alta de 3% na comparação com 2018.
A três quilômetros do Brás, quase no limite do centro expandido, o Belenzinho, na Zona Leste, possui áreas demarcadas como Zeis que mudaram para valer o local. Voltada em sua maioria a um público com faixa de renda de até três salários mínimos, cada edificação pronta traz dezenas de histórias de superação para contar. “Eu morava de favor em uma casa que era do meu pai, na Vila Matilde, mas ele pediu o imóvel e eu falei que precisava de um prazo de cinco anos para comprar meu apartamento”, afirma o assistente administrativo Rafael Medeiros, 34. “Ninguém botou fé, pois eu ganhava pouco, assim como minha esposa, mas conseguimos um subsídio de 5.000 reais do Minha Casa Minha Vida, vendemos o carro e compramos nosso apartamento. Não é grande (tem 42 metros quadrados), não temos varanda gourmet, mas é nosso”, comemora Medeiros, que paga uma prestação mensal de 1.050 reais. Para a família Medeiros, embora o custo do financiamento tenha aumentado as despesas do orçamento doméstico, a economia com deslocamentos menores compensa em partes na outra ponta. “Antes gastávamos em média 700 reais mensais com combustível para ir e voltar do trabalho. Hoje esse valor não chega a 200 reais”, comemora Rafael. Na região onde morava, o valor do aluguel de um apartamento parecido não sai por menos de 1.300 reais mensais.
Ainda mais longe do Belém estão o sonho e o empreendimento almejado pela dona de casa Jucely Silva, 40. Prometido para sair em 2016, o apartamento em Cidade Tiradentes até hoje não ficou pronto. O imóvel faz parte de um conjunto de dezesseis blocos, construídos no sistema de mutirão. “Quando tudo ficar pronto, eu pagarei uma prestação equivalente a dez por cento de um salário mínimo (104 reais).”
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Não é por falta de espaço sem uso que os mais pobres continuam longe do centro da cidade. Atualmente, há 1.500 imóveis na área que foram notificados pela prefeitura e poderão entrar na lei do IPTU progressivo, medida que visa a combater a ociosidade de terrenos e construções. O caminho final do instrumento, após os procedimentos administrativos, é a desocupação do espaço, que deverá ser transformado em moradia popular. “São 3 milhões de metros quadrados que virarão habitação para pessoas que poderão trabalhar a pé ou com no máximo uma condução. Hoje o principal entrave para a construção de moradias é o preço do terreno. À medida que houver mais espaços disponíveis, cai o valor da terra”, afirma o vereador José Police Neto, autor da lei que estabelece a função social da propriedade subutilizada.
“São 3 milhões de metros quadrados que virarão habitação para pessoas que poderão trabalhar a pé ou com no máximo uma condução.” – José Police Neto, vereador.
Enquanto o estoque de terrenos não aumenta, a discussão se dá em torno da viabilidade de empreendimentos nos espaços existentes, juntamente com as regras da legislação vigente. “As Zeis localizadas no centro exigem que você faça um mínimo de 60% de habitações HIS 1, destinadas a famílias com renda até três salários mínimos. E quem tem essa renda dificilmente consegue um valor de financiamento acima de 100.000 reais. Com isso, o valor do apto deveria girar em torno de 130.000 reais. Essa conta para o produtor imobiliário privado construir no centro é complicada, pois o terreno é mais caro, tornando o equilíbrio econômico mais difícil de ser atingido”, afirma André Czitrom, diretor da construtora Magik JC, que possui quinze empreendimentos do Minha Casa Minha Vida no centro, sendo dois deles em Zeis. Ex-secretário de Desenvolvimento Urbano da capital na gestão Haddad, o arquiteto e urbanista Fernando de Mello Franco afirma que Zeis sozinhas não fazem verão e defende a junção com outros mecanismos. “A questão não é se as Zeis são boas ou não. Para debelar o déficit habitacional, é preciso associá-las a financiamento bancário e com gestão efetiva da produção, o que não vem acontecendo”, afirma Franco.“Oitenta por cento do déficit é para a faixa de até um salário mínimo, que vem sendo cada vez menos atendida pelo Minha Casa Minha Vida.” No ano que vem, o assunto de remarcação de novos territórios de Zeis vai ganhar outras discussões, devido à próxima revisão do Plano Diretor. “Mas falar disso agora é abrir a porta do inferno. Toda vez que se fala em mudar, começam a aparecer 500.000 demandas individuais”, protesta o secretário de Urbanismo, Fernando Chucre.
“O centro é um bairro em meio período, com cada vez menos moradores.” – Henrique Mélega RE, arquiteto.
Enquanto a discussão em torno da necessidade de mais moradias no centro ocorre, uma área delimitada ao lado de um conjunto habitacional anunciado com pompa continua no campo da promessa. Inaugurado pelo ex-governador Geraldo Alckmin, em 2018, o Complexo Júlio Prestes, na Luz, composto de oito torres, vive cercado por usuários de drogas da Cracolândia. Para se protegerem das pedradas, muitos moradores colocam tapumes na sacada. “Imagina acordar de manhã com um estouro de vidro e com aqueles milhares de usuários gritando embaixo da sua janela”, afirma um morador que prefere não ser identificado. Sem segurança, os terrenos ao lado que seriam delimitados como Zeis e que ficam próximo ao Complexo Júlio Prestes nunca passaram perto de incorporadores.
177 quilômetros quadrados de Zeis podem virar moradia popular na metrópole.
Situação contrária vive a região do Cambuci. Em um terreno de 107.000 metros quadrados, uma área equivalente à do Parque da Aclimação, a poucas quadras dali, um megaempreendimento com 35 torres já começa a irromper os céus. Na primeira fase serão 2.000 unidades, e 40% delas deverão ser destinadas aos compradores com renda de até 6.000 reais. Outro porcentual igual não será limitado a faixas de renda. O restante poderá ser para rendas de até 9 980 reais. “Incentivar a habitação social no centro da cidade significa mais qualidade de vida para essa população, reduzir deslocamentos e pressões na infraestrutura e amenizar a expansão territorial urbana e seus impactos em áreas de preservação e mananciais. Além disso, é uma das melhores opções para a requalificação do centro ao habitar uma das regiões mais estruturadas da cidade, que atualmente é um bairro em meio período, com cada vez menos moradores”, afirma o arquiteto e urbanista Henrique Mélega Re, presidente da Associação Brasileira dos Escritórios de Arquitetura (ASBEA).
RESERVA RAPOSO, NO FIM DA CIDADE
Empreendimento, que terá 124 torres, ficou paralisado na Justiça após ação de vereador.
Quando ficar pronto, em 2026, o Reserva Raposo será um bairro planejado de prédios com 17.900 apartamentos e 60.000 moradores, o dobro de habitantes da Vila Leopoldina.
No espaço, de 450.000 metros quadrados, localizado no quilômetro 18 da Rodovia Raposo Tavares, no sentido interior, haverá dois parques públicos, seis creches, uma Unidade Básica de Saúde (UBS) e um terminal de ônibus. As calçadas terão 9 metros de largura e contarão com ciclovias.
Apesar das promessas, o início da empreitada não foi nada fácil. Há dois anos, a Justiça anulou a licença ambiental fornecida pela prefeitura de São Paulo, a pedido do vereador Gilberto Natalini (PV). O argumento foi que parte do terreno pertence ao município de Osasco. “Além disso, várias árvores foram cortadas ilegalmente”, diz o parlamentar. O Grupo Resek, responsável pela construção, negou o corte de vegetação. A liminar foi cassada em segunda instância e a obra prossegue até o julgamento do mérito, ainda sem data para ocorrer.
Colaborou Guilherme Queiroz.
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 2 de setembro de 2020, edição nº 2702.
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