Depois de onze anos longe de São Paulo, a figura solitária de perna dilatada e cabeça diminuta do Abaporu (1928), criado por Tarsila do Amaral (1886-1973), retorna a casa em grande estilo. Na sexta (5), o Masp abre a aguardada mostra Tarsila Popular, que cobre quase cinco décadas de produção da pintora paulista e tem o gigante ensolarado que foi pintado em um palacete na Alameda Barão de Piracicaba, no bairro de Campos Elíseos, como estrela principal. Fora um presente de aniversário da artista ao seu então marido, o escritor Oswald de Andrade (1890-1954). Sua generosidade inicial não previa o tamanho impacto que viria a seguir.
Estupefato, Oswald chamaria um amigo, o diplomata brasileiro Raul Bopp (1898-1984), para ver a criatura. Juntos, os três criariam o nome em tupi-guarani que une “aba” e “poru”, nada menos que “o homem que come gente”. Também viria daí o Manifesto Antropofágico, marco modernista que propunha “comer” a cultura estrangeira para depois criar um mexido inédito com o conhecimento nacional.
Contrariando a euforia antropofágica, o Abaporu deixou o país em 1995, quando o argentino Eduardo Costantini, fundador do Museu de Arte Latino-Americana de Buenos Aires (Malba), o comprou em um leilão por cerca de 9 milhões de reais. “Até hoje recebo ofertas para que o quadro volte para cá”, conta. Em fevereiro deste ano, ele observou atentamente a venda da tela A Lua (1928), que era de uma coleção particular, ao Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA) — a retrospectiva organizada pela instituição em 2018 ajudou a valorizar ainda mais a produção da brasileira. Os quase 80 milhões de reais pagos não o tentaram a fazer o mesmo com a tela, pintada no mesmo ano. “Não vamos vender o Abaporu”, diz, taxativo. Emprestar, porém, ele empresta.
No Masp, o grandalhão disputado se junta a cerca de noventa obras, como Antropofagia (1929) e Operários (1933). A abordagem do conjunto investiga personagens, paisagens e narrativas. “Você já ouviu falar que a planta que aparece em Manacá (1927) é usada por indígenas com fins curativos?”, questiona Fernando Oliva, que divide a curadoria com Adriano Pedrosa, diretor artístico do museu.
Oliva conta ainda que a expografia é composta de painéis com travas em sua parte superior. As estruturas dão um aspecto de leveza e transparência ao espaço, similar ao efeito dos cavaletes de vidro propostos pela arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi (1914- 1992), responsável pelo projeto do prédio da instituição. Outro ponto importante são as cores utilizadas nas paredes, como um azul discreto e lavado. Esse e outros tons, denominados pela pintora de “rosa violáceo, amarelo vivo e verde cantante”, por exemplo, deram um toque de brasilidade à sua produção em uma Paris do começo do século XX sedenta por regionalismos.
Tarsila passou a apostar nessas tonalidades não por alguma influência acadêmica ou bibliográfica, mas sim depois de uma viagem pelo Brasil com o crítico suíço Blaise Cendrars (1887-1961), entre outros amigos. “Encontrei em Minas as cores que adorava quando criança. Ensinaram-me depois que eram feias e caipiras. Segui o ramerrão do gosto apurado… Mas depois vinguei-me da opressão”, rememorou a artista em um depoimento em 1927.
Herdeira de uma família da região de Itu dona de cerca de vinte fazendas de café, Tarsila tinha um pé no mundo rural e uma mão em Paris. Lá, aprendeu uma nova forma de representar a realidade. Esse jeito diferentão era devoto do cubismo de Pablo Picasso (1881-1973), mas também bebia do surrealismo da turma de Salvador Dalí (1904-1989). Nessa guinada de paisagens e personagens arredondados, o francês Fernand Léger (1881-1955) foi seu grande mentor. O leque de influências incluía conversas com amigos ilustres, como o escultor Constantin Brancusi (1876-1957), o dramaturgo Jean Cocteau (1889-1963) e o músico Erik Satie (1866-1925).
Além da qualidade e inventividade de sua produção, a elegância de Tarsila atraía os holofotes em Paris. Sua marca registrada nos encontros com a nata artística francesa eram os vestidos confeccionados pelas lendas da alta-costura Jean Patou (1880-1936) e Paul Poiret (1879-1944). No livro Tarsila: Sua Obra e Seu Tempo, da crítica de arte Aracy Amaral, é possível ver algumas peças que ela usou. Sua vaidade resistiria a baques econômicos — a quebra da bolsa, em 1929, quase levou seu clã à falência — e também na saúde — uma cirurgia para a retirada de um tumor na coluna a deixou paraplégica no fim da vida. “A regra valia para todo mundo. Só se podia entrar no quarto quando ela estivesse pronta: maquiada e com lenço”, afirma Tarsilinha, sobrinha-neta da pintora.
Nos anos que antecederam sua morte, em 1973, Tarsila gostava de revisitar sua trajetória. Quem relembra com carinho o período é o pintor Sérgio Fingermann, 65, que morava no mesmo prédio que ela em Higienópolis. “Para que eu não ficasse sozinho, ela me chamava para lanchar”, conta. No filme nostálgico que a pintora com vocação para contadora de histórias alinhavava (e que Fingermann via), apareciam lembranças de seus quatro casamentos, que foram reprovados por seus irmãos. Também estava lá o apoio irrestrito dos pais, que não a abandonaram nem quando foi presa pelo governo Vargas, em 1932, depois de visitar a União Soviética (URSS). A dor pela perda da neta Beatriz e da filha Dulce também a acompanhava, embora conservasse a serenidade. Depois da partida da artista, Fingermann ficou com parte de seus chapéus e uma vívida impressão: “Ela enfrentava as adversidades sem reclamar, fosse no amor, fosse na vida profissional”. Com a nova exposição do Masp, o público paulistano poderá então ver com os próprios olhos por que a criadora do Abaporu será sempre um gigante entre nós.
ORIGEM DESCOMUNAL
Depois de uma amiga dizer que a figura de Abaporu remetia a pesadelos, a pintora nascida em Capivari (SP) fez uma reflexão: “Só então compreendi que eu mesma havia realizado imagens inconscientes, sugeridas por histórias ouvidas em criança”.
ECOS SOCIAIS
A Negra (1923) antecipa o gigantismo visto em Abaporu (1928) e evidencia a influência da convivência da artista com homens e mulheres negros que foram escravizados, bem como seus descendentes. A protagonista da tela ainda apareceria em um desenho na capa do livro Feuilles de Route (1924), de Blaise Cendrars (1887-1961).
CORES CAIPIRAS
Em Manacá (1927), Tarsila traz um espécime da Mata Atlântica sobre um fundo bege com tons esmaecidos de verde, azul e rosa. Ela havia tirado essas cores da sua paleta antes, porque a fizeram acreditar que não eram bonitas. Mas mudou de ideia e as resgatou depois de uma viagem a cidades coloniais mineiras, em 1924. Curiosidade: “manacá” é uma planta usada pelos indígenas com fins curativos.
INFLUÊNCIA SOVIÉTICA
O amontoado de rostos visto na acinzentada Operários (1933) foi pintado em uma das casas em que a artista morou em São Paulo, na Alameda Barão de Limeira. Tarsila havia visitado a União Soviética dois anos antes e ainda sentia a queda do seu padrão de vida em decorrência da crise de 1929, que atingiu a elite cafeeira, da qual sua família fazia parte.
MONSTRENGA BRASILEIRA
A artista mergulha no folclore nacional para fazer A Cuca (1924). A criatura com cabeça de jacaré e unhas compridas surge angulosa na pintura de Tarsila, assim como a paisagem que a rodeia, reforçando o tom onírico da tela. O quadro foi exibido na primeira exposição da pintora em Paris, em 1926, na galeria Percier. Até hoje, pode ser visto com sua moldura original, feita por Pierre Legrain (1889-1929).
AUTORREFERÊNCIAS
Em um olhar retrospectivo sobre a própria produção, a pintora funde A Negra (1923) e Abaporu (1928) em uma nova tela: Antropofagia (1929). Nessa junção, os cactos se multiplicam e as expressões faciais são apagadas. Em uma mirada rápida, os dois personagens parecem compor o mesmo corpo surreal.
> Masp. Avenida Paulista, 1578, 3149-5959. Quarta a domingo, 10h às 17h30; terça, 10h às 19h30. R$ 40,00. Grátis às terças. Até 28 de julho. A partir de sexta (5).
Publicado em VEJA SÃO PAULO de 03 de abril de 2019, edição nº 2628.