Pertencentes à faixa etária mais vulnerável à covid-19, ministros de tribunais superiores – a maioria acima dos 60 anos – se desdobram na nova rotina em home office. O uso das roupas ficou mais flexível, os alongamentos ganharam atenção, mas as reflexões que pautam os julgamentos tradicionais se mantêm – agora focadas na pandemia.
A reportagem do jornal O Estado de S. Paulo conversou com o ministro do Superior Tribunal de Justiça (STJ) Og Fernandes, de 68 anos, e seus colegas Luís Roberto Barroso, 62, Gilmar Mendes, 64, e Marco Aurélio Mello, 73, do Supremo Tribunal Federal (STF) e Maria Elizabeth Rocha, 60, do Superior Tribunal Militar (STM) sobre a experiência de ser juiz sem poder sair de casa. De seus escritórios, salas e bibliotecas particulares, eles contaram, por telefone e por e-mail, como é trabalhar na quarentena.
Nesta quarta-feira, 16, o STF faz a primeira sessão plenária por videoconferência – uma quebra de tradição em quase 130 anos. Julgamentos virtuais e “lives” também passaram a fazer parte do cotidiano dos magistrados. Leituras e filmes viraram distração nas horas de descanso, em contraponto à aridez do noticiário. “Uma recessão parece inevitável. Todo o mundo está pensando fórmulas para aliviar o sofrimento dos mais necessitados e encontrar caminhos para salvar empresas e manter empregos”, avaliou Barroso. “Não é fácil, nem barato. Mas tem que fazer. Espero que os governos consigam a dose certa.”
Nas duas Cortes onde o ministro atua, a tecnologia ajuda a driblar a pandemia: os julgamentos são por videoconferência ou no plenário virtual, ferramenta online à la Black mirror que permite que os magistrados votem com apenas um clique. Barroso cancelou a participação em eventos em Harvard, Londres e Kyoto, onde apresentaria um trabalho sobre a Amazônia. E deixou de usar o terno. “Eu já tinha o hábito de trabalhar em casa de manhã, só estendi isso para a tarde. Divido o meu dia entre estudar coisas novas, elaborar os votos que eu faço artesanalmente e despachar com meus assessores.”
Para o ministro, os dias ficaram mais longos e produtivos. “Embora a participação em sessões seja importante e tenha visibilidade, o trabalho pesado mesmo é feito longe da TV Justiça.” Ele vê com preocupação e esperança o cenário de enfrentamento da pandemia. “Num mundo que se tornava cada vez mais individualista e indiferente, subitamente a solidariedade passou a ser uma questão de vida ou morte. Espero que seja uma mudança de paradigma, e não um surto passageiro.”
“Prisão”
“Estou em prisão domiciliar”, brincou Og Fernandes, relator no Tribunal Superior Eleitoral (TSE) de ações que pedem a cassação do presidente Jair Bolsonaro e do vice Hamilton Mourão. Ex-jornalista, o ministro está recluso. Em casa, tem um “minigabinete”, onde analisa os casos que não param de chegar. “A minha geração é pós-Segunda Guerra, não assistiu a nenhum fato que mexesse de uma maneira geral com a humanidade como esse. Tivemos vários episódios lamentáveis, mas não tinham esse caráter universal. Estamos todos no mesmo passo: tentando sobreviver”, disse Og. “Essa sensação não é pior porque temos essa possibilidade do contato telefônico, mas, às vezes, nada substitui o contato.”
O ministro do STJ gosta de filmes e seriados, mas está fugindo de duas sugestões impertinentes da Netflix – Epidemia e Pandemia. “Esses dois não vou assistir. Acho que a realidade supera a ficção, estamos vivendo num momento em que não me parece contribuir nada obras dessa natureza.”
Uma das autoridades que mais circulam em Brasília, o ministro Gilmar Mendes tinha, até antes da pandemia, presença cativa em seminários, eventos e conversas reservadas com autoridades de outros Poderes. A covid-19, no entanto, o obrigou a trocar as agendas “olho no olho” pela esfera online, como os debates nas redes. Em um deles, mandou um recado ao Planalto: o Supremo não vai validar decisões do governo que contrariem a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Gilmar procura manter a rotina: de camisa social, leciona por videoconferência, tem aulas a distância de alemão, inglês e espanhol, faz exercícios físicos em casa e assiste às reprises dos jogos de futebol na TV – é torcedor do Santos. “Vamos reenfatizar alguns temas da agenda nacional, como a valorização de instituições, da Fiocruz, do SUS, que está sendo a salvação do Brasil neste momento.”
Dos 11 integrantes do STF, Marco Aurélio Mello é considerado o ministro mais resistente ao uso do plenário virtual. “Sou um juiz que só vai ao tribunal para as sessões presenciais, que, parece, não estarão em moda tão cedo”, afirmou. Ele disse ainda sentir falta dos jogos do Flamengo e de futebol (“a festa do povo”), mas tem aproveitado o distanciamento social com a presença da família, com quem passou o feriado de Páscoa.
Papel e caneta
“Analógica”, a ministra Maria Elizabeth Rocha também prefere as coisas à moda antiga, como papel e caneta. “Tinha relação de ódio com o computador, agora não tem mais jeito. É um caminho sem volta”, afirmou a ministra, que passou a dar aulas por videoconferência e a participar de sessões virtuais de julgamento. Enquanto ensina a distância e cuida dos processos do gabinete, Maria Elizabeth assumiu “o lado dona de casa”. “Estou limpando a casa como nunca.”
Fã de Truffaut, irmãos Coen e Woody Allen, a ministra indica filmes em programa da Rádio Justiça. “São tempos muito angustiantes, a arte ajuda a viver, a respirar. Se ainda não tem vacina contra a covid-19, ao menos temos a arte para nos redimir como humanidade.” As informações são do jornal O Estado de S. Paulo.
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