A Netflix é o portal mais inebriante para o planeta Terra

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Durante meses após a eleição de 2016, tudo que eu queria era fugir dos Estados Unidos. Não no sentido literal – seguindo o exemplo liberal clichê de refugiar-se no Canadá –, mas no intelectual, social e psíquico. Só se falava em Donald Trump, e eu precisava de um abrigo.

Queria encontrar um lugar onde o presidente americano eleito e seus oponentes americanos e suas controvérsias americanas simplesmente não existissem. E o encontrei em um reality show britânico de competição culinária. Quero dizer com isso que o encontrei na Netflix, serviço que se tornou o mais inebriante e valioso portal on-line para partes do planeta Terra que não ficam nos Estados Unidos.

Em 24 de fevereiro, a Netflix concorreu pela primeira vez ao Oscar de Melhor Filme com “Roma”, um mergulho na infância do diretor mexicano Alfonso Cuarón na Cidade do México. Apesar de não ter recebido a estatueta, ganhou nas categorias Melhor Diretor, Melhor Filme Estrangeiro e Melhor Fotografia, revelando as ambições da empresa. Virtualmente sozinha entre outras companhias de tecnologia e mídia, a Netflix pretende consolidar um novo tipo de cosmopolitismo digital sem fronteiras.

Quando vi britânicos bacanas e educados competindo para ver quem fazia o melhor bolo, saquei uma das primeiras dicas de qual seria a peculiar estratégia da Netflix. “The Great British Baking Show”, para quem estiver por fora, é uma competição culinária entre amadores e é uma das coisas menos americanas que você vai ver na televisão. O programa representa uma utopia: uma terra multicultural de sujeitos amigáveis e mães com empregos arcaicos – Imelda é “guia turística no interior” –, abençoados pela ajuda financeira governamental que lhes dá bastante tempo livre para obter experiência em confeitaria britânica. Para um americano, o programa sugere um tempo e um espaço em que nossas preocupações não significam nada. E, mais do que assar bolos, é isso que “The Great British Baking Show” realmente representa.

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A atração foi primeiramente produzida e transmitida pela TV britânica (com o nome “The Great British Bake-Off”) para só depois ser importada para os Estados Unidos pelo Public Broadcasting Service, que então licenciou o programa para a Netflix, que, mais recentemente, obteve a licença diretamente da emissora Channel 4, da Grã-Bretanha.

No entanto, a Netflix, que possui 139 milhões de assinantes ao redor do mundo, ultimamente tem se transformado em algo mais do que uma simples importadora de produções escapistas de outros países. Em 2016, a empresa se expandiu para 190 países e, no ano passado, pela primeira vez, a maioria dos assinantes e do lucro veio de fora dos Estados Unidos. Para atender a esse público, a plataforma encomendou e licenciou centenas de atrações com a finalidade de reverberar a vida em cada um de seus mercados e, em alguns casos, misturando idiomas e sensibilidades (veja o sucesso de audiência de Marie Kondo, que arruma a casa das pessoas metade em japonês, metade em inglês).

No caminho, a empresa descobriu algo surpreendente: apesar da onda de nacionalismo crescente no planeta, muitas pessoas gostam de assistir a filmes e programas de TV de outros países. “Estamos aprendendo que os indivíduos têm gostos muito ecléticos e diversos, e, se você oferece a eles histórias do mundo inteiro, eles vão se aventurar e encontrar algo inesperado”, me contou Cindy Holland, vice-presidente de conteúdo original da Netflix.

A estratégia pode soar familiar; tanto Hollywood quanto o Vale do Silício, por muito tempo, perseguiram a expansão internacional. A tática da Netflix, contudo, tem uma diferença fundamental: em vez de tentar vender ideias americanas para o público estrangeiro, ela mira em vendar ideias internacionais para uma audiência global. Uma lista das recentes produções mais vistas e culturalmente relevantes parece uma simulação acadêmica do modelo da ONU: além do programa da Kondo, tem o monólogo da comediante australiana Hannah Gadsby, “Nanette”; da Grã-Bretanha, “Sex Education”; “Elite” veio da Espanha; “The Protector”, da Turquia; e “Baby”, da Itália.

Admito que, até agora, minha narrativa soa um tanto crédula e ingênua. Você deve estar pensando: “Deixa ver se entendi: uma empresa de tecnologia quer aproximar o mundo?” Numa época em que redes sociais ajudam a fomentar desinformação e fervor populista pelo mundo, seu ceticismo está correto. Por outro lado, existe uma diferença crucial entre a Netflix e as outras gigantes: a primeira ganha dinheiro com assinaturas, não com publicidade.

Essa pequena distinção inverte as motivações. Ou seja, a Netflix tem razões para agradar a cada novo cliente, e não apenas aqueles presentes nos mercados mais prósperos. Cada novo título oferece legendas em 26 línguas e, além disso, a empresa está desenvolvendo dublagem de áudio de alta qualidade em dez idiomas. Por anos, a gigante e seus bilhões têm causado um terremoto na indústria de Hollywood. Agora, está usando o próprio dinheiro – em 2018, a empresa gastou 12 bilhões de dólares (mais de 45 bilhões de reais) em conteúdo e planeja gastar 15 bilhões em 2019 – em filmes e produções para a TV na França, Espanha, Brasil, Índia, Coreia do Sul e Oriente Médio, entre outros lugares.

A ofensiva global da Netflix não saiu ilesa. No fim do ano passado, a empresa foi condenada em âmbito internacional por ter cancelado um episódio de “Patriot Act With Hasan Minhaj” do serviço da Arábia Saudita. O comediante tinha criticado o príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman após a Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos ter concluído que este teria ordenado o assassinato de Jamal Khashoggi, jornalista saudita dissidente.

A empresa argumentou que não tinha escolha a não ser obedecer à autoridade legal saudita, que alegou que o episódio violava um estatuto, se quisesse continuar operando no país. Os executivos da organização ponderaram que levar aos sauditas o conteúdo restante da Netflix – um ou outro episódio de “Patriot Act” ou programas que exploram questões sobre gênero e sexualidade, como “Big Mouth”, “Sex Education” e “Nanette” – era melhor do que privar o país do serviço como um todo.

Apesar de traiçoeiro, é um argumento válido. A plataforma realmente parece estar conseguindo derrubar barreiras culturais e incitar novas discussões mundo afora. Depois que ela espalhou outdoors em Bangkok com anúncios da série “Sex Education” no mês passado, um partido político conservador da Tailândia entrou com uma reclamação contra a empresa por transmitir a picante comédia britânica, que o partido chamou de “uma grande ameaça à sociedade tailandesa”. No universo jovem e progressista da internet, a resposta foi furiosa e, no meio da revolta, as pessoas começaram a discutir os problemas que assolam a sociedade tailandesa, como a falta de educação sexual e as altas taxas de gravidez na adolescência.

Leve em consideração, também, “Nanette”, em que Gadsby, praticamente desconhecida antes da Netflix, apresenta um desempenho arrebatador, no formato de comédia stand-up, em torno da história da arte, da homossexualidade, dos direitos das mulheres e dos limites trágicos da comédia. O espetáculo me abriu os olhos, e moro no progressivo mundo maravilhoso do norte da Califórnia. Para uma jovem lésbica na Índia, onde pessoas como Gadsby não são facilmente vistas na mídia, pode ter sido uma revelação. De fato, “Nanette” foi um sucesso no Sudeste Asiático e na Índia.

É legítimo questionarmos até quando a Netflix será capaz de manter essa discussão sem fronteiras – se, ao continuar crescendo, terá ou não de fazer concessões legais ou morais a censores locais ou a outro tipo de árbitro cultural. De qualquer maneira, as possibilidades me deixam otimista. Não seria incrível se a internet conseguisse unir as pessoas de todo o mundo, no fim das contas?



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