A história trágica de Nora Rabello, herdeira do Banco Rural

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Nora Rabello perdeu a irmã, o pai e a mãe. Viu sua outra irmã, então presidente do Banco Rural, ser condenada por formação de quadrilha e lavagem de dinheiro após o escândalo do Mensalão. Por fim, perdeu a mansão em que morava, em Arraial D’Ajuda, no sul da Bahia, na execução de uma dívida trabalhista de R$ 5,6 mil, por negligência de sua advogada.

Essa é a sua versão da história. Para Tassizo Carletto, empresário do ramo de transportes que comprou a casa por R$ 600 mil em um leilão judicial, Nora “nunca morou em Arraial D’Ajuda”. “Quando tomei posse do imóvel, ele estava deteriorado”, afirmou. O casarão de 2,1 mil m² foi construído em um terreno de 35 mil m² de mata nativa, em 2006, pela própria Nora. Ela argumenta que o imóvel vale R$ 20 milhões, mas não sabe ao certo quanto foi gasto na construção. Lá ela administrava um restaurante na beira da praia, chamado Flor do Sal.

Dinheiro nunca foi uma preocupação para Nora, nem para suas duas irmãs. Seu pai, Sabino Rabello, foi um empresário de sucesso. Comprou um banco em 1964 e mudou seu nome para Banco Rural. A instituição era sediada em Belo Horizonte, cidade em que Nora, Júnia e Kátia cresceram. Para Nora, o pai era “como Deus”. Centralizava todas as decisões, no trabalho e na família, e lidava mal com divergências. 

A mãe, Jandyra, passava noites sozinhas quando o banqueiro saía para namorar. “Mamãe não era vítima. Eles tinham um acordo”, explicou a filha. Ela encontrou a ÉPOCA no escritório de seus advogados, em Brasília, no início de dezembro. Estava com os cabelos loiros amarrados e um vestido largo. Esfregava os olhos compulsivamente durante a conversa. Nos momentos mais tristes de seu relato, falava com tons mais agudos, que quase a deixavam sem voz.

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Júnia, a irmã mais velha, trabalhou no banco desde cedo e era fã de hipismo. Kátia, a mais nova, se dedicou ao balé. Nora tentou cursar três faculdades, mas desistiu de todos os cursos. “Muito chato. Acho que não aguentei os professores burros”, queixou-se. Passou uma temporada nos Estados Unidos, nos anos 1980, e aprendeu a pilotar avião. Aventurou-se dirigindo um teco-teco em uma viagem com um amigo japonês e outro italiano. Foi tentar cuidar dos negócios do pai em Miami, mas dormia nas reuniões com os estrangeiros.

De volta ao Brasil, Nora se ocupava cuidando da família, sem trabalhar diretamente nos negócios financeiros. Vez ou outra, lidou com imóveis. Nessa época, Júnia já havia assumido a presidência do banco. Sob sua administração, que durou 20 anos, o Banco Rural se tornou a maior instituição financeira de Minas Gerais. Com o crescimento, porém, veio uma série de escândalos.

No início dos anos 1990, uma CPI no Congresso Nacional investigou o governo de Fernando Collor e concluiu que o Banco Rural era o “grande caixa” do esquema clandestino do ex-tesoureiro PC Farias. A instituição abrigava contas fantasma e tinha conexões com uma offshore nas Ilhas Cayman que políticos usavam para lavar dinheiro, concluiu o relatório da comissão.

Em 1999, antes que o caso tivesse consequências na Justiça, Júnia morreu em um acidente de helicóptero nos arredores de Belo Horizonte. A hélice atingiu sua cabeça. “Meus pais ensinaram a gente a ter força naquele momento. Não me parecia que seria possível, mas a força veio deles”, afirmou Nora. Kátia Rabello, que era sócia de um grupo de dança contemporânea e bailarina, assumiu o Banco Rural.

O banco voltou a aparecer em uma CPI que investigava associações brasileiras de futebol em 2001. Uma representação do banco nas Bahamas intermediou um empréstimo de US$ 7 milhões obtido pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) no Delta National Bank, de Nova York. De Nova York até a conta corrente da CBF em agência do Banco Rural, em Belo Horizonte, o dinheiro passou pelo Banestado de Nova York e depois para a representação do Rural em Nassau, nas Bahamas. Segundo a CPI, o caminho foi “tortuoso”, indicando irregularidades.

O vice-presidente do Banco Rural, José Augusto Dumont, morreu em 2004 em um acidente de carro na estrada que liga Belo Horizonte a Brasília. Braço direito de Kátia, Dumont era uma das peças chave na quadrilha que operou o Mensalão. O esquema, em que o banco concedeu empréstimos fictícios a Marcos Valério para encobrir a corrupção no Congresso, durou de janeiro de 2003 a junho de 2005. Em janeiro de 2005, Sabino Rabello morreu de um acidente vascular cerebral aos 84 anos.

À margem dos negócios do banco, a irmã do meio não foi acusada criminalmente quando o escândalo do Mensalão veio à tona. Kátia Rabello, porém, foi presa. As duas cortaram relações. “Com a morte de papai e a crise que o banco passava, a verdade é que ficou muito pesado. Levei mamãe para a casa de Arraial D’Ajuda e montei o restaurante. Lá a gente ficava mais protegida. Mamãe já vinha com problemas de coração”, disse Nora. Ela bolou a decoração e o projeto da casa, que chamou de Casa das Cobras, em homenagem ao bicho que prolifera na mata ao redor do terreno. Cobras de madeira e de alumínio adornavam os cômodos.

O restaurante se tornou uma boa fonte de renda. “Batatas fritas muito boas e cerveja gelada”, registrou um cliente na página do estabelecimento. “Restaurantes na praia às vezes são ruins, já que as pessoas frequentam de qualquer jeito. Não é o caso do Flor do Sal. Levei minha família e têm serviço ótimo, acharam um lugar para a gente e a comida estava maravilhosa”, avaliou outro no TripAdvisor. “Uma surpresa inesperada encontrar comida tailandesa num restaurante de praia. Ótimo serviço, preços justos, um chef argentino que também trabalha em Ibiza, na Espanha”, disse um terceiro.

As práticas trabalhistas, porém, foram questionadas na Justiça. Em 2009, um ex-funcionário entrou com uma ação contra a herdeira. Pediu horas extras, aviso prévio e outras verbas devidas por Nora. “Fui embromando, levando esse processo com a barriga”, disse a herdeira à ÉPOCA. Ela foi condenada no ano em que o ex-empregado entrou com a ação, mas a execução —fase do processo em que há a cobrança da dívida— demorou sete anos.

De 2011 a 2014, a Justiça tentou quitar a dívida com a penhora e leilão de bens da casa de Nora. Tentou leiloar uma TV de R$ 17 mil, uma mesa de R$ 3 mil e um conjunto de catorze espreguiçadeiras, uma mesa e seis cadeiras que valiam R$ 19,5 mil. Os itens estavam deteriorados. Quando, por fim, a juíza Andréa Schwarz de Senna Moreira ordenou a penhora da casa de Nora em Arraial D’Ajuda, a herdeira argumentou, por seus advogados, que se tratava de um bem de família —sua residência— e que o valor do imóvel era desproporcional à dívida. A juíza discordou do primeiro argumento e disse que, quanto à desproporção, bastava pagar a dívida com os bens de que Nora dispunha.

Quem trabalhava no caso era uma advogada de Porto Seguro, Karina Salemi. O escritório de advocacia que cuidava dos bens de Nora, o Siqueira Castro, não tomou conhecimento do caso. Além disso, a herdeira tinha outras preocupações, como a doença cardíaca de sua mãe. Em 2015, a saúde de Jandyra Rabello deteriorou. Ela faleceu após 40 dias internada em um hospital em São Paulo. “Mamãe ficou doente. Foi para São Paulo fazer um tratamento, fez uma cirurgia que não deveria ter feito. Fiquei sozinha”, contou Nora. 

Outro revés foi a liquidação do Banco Rural, determinada pelo Banco Central em 2013. Os bens de todos os sócios e administradores foram bloqueados instantaneamente, como costuma acontecer nesse tipo de situação, para que o dinheiro não desapareça. Nora era acionista da holding que controlava o banco, por ser uma das herdeiras de seu pai. Seus bens ficaram congelados, segundo seus advogados. Ela está processando os ex-gestores do banco, incluindo Kátia, a irmã mais nova, para ganhar uma indenização pelo prejuízo que amargou com o escândalo. A ação ainda está em andamento.

Em março de 2016, Nora fez um acordo e quitou a dívida com o funcionário, já de R$ 28 mil corrigidos. Não pagou, porém, as custas processuais, no valor de R$ 5,6 mil. Foi a deixa para que Andrea Schwarz leiloasse a casa. Ela considerou que Nora não produziu provas de que o imóvel era seu bem de família, e que sua avaliação de que a casa valia R$ 20 milhões, e não R$ 1,2 milhão, como averiguou o perito, também carecia de embasamento demonstrado no processo. O imóvel foi vendido por R$ 600 mil.

O fato de Nora ter residido ou não em Arraial D’Ajuda tem consequências porque, segundo a lei brasileira, a propriedade que for considerada “bem de família” não pode ser penhorada. A juíza Andrea Schwarz, do Tribunal Regional do Trabalho de Porto Seguro, considerou que a residência de Nora Rabello em seu imposto de renda era o apartamento de Belo Horizonte, e não a casa de Arraial D’Ajuda, e que Nora não apresentou provas de que morava na Bahia durante o longo período que durou o processo. Nora não nega o descaso, que atribui a sua advogada. A herdeira conta que deixou o dinheiro nas mãos de Salemi e confiou que ela saldaria a dívida.

Arraial D’Ajuda é um pequeno balneário adjacente a Porto Seguro. A forma mais comum de chegar lá é por balsa. A revista ÉPOCA entrou em contato com moradores de regiões variadas da cidade litorânea. Alguns confirmaram que Nora Rabello morava em Arraial D’Ajuda, ou pelo menos passava boa parte do ano lá, como argumentou no processo. Disseram, inclusive, que frequentavam seu restaurante.

“Morou aqui muitos anos, com certeza. Está sumida há um ano, mais ou menos, porque teve problema com o banco. Ela não foi presa?”, questionou Raul Alberto Bonomo, proprietário do hotel Morada dos Macacos. O dono de outra pousada contou que via Nora sempre no verão. Disse que conheceu sua mãe, Jandyra, que era muito simpática, e foi a uma festa de aniversário da herdeira, mas não saberia dizer se a casa era sua principal residência, já que ela sempre voltava para Belo Horizonte. “Não coloque meu nome. Essa história é muito feia”, pediu. 

Nora Rabello foi passar um mês na Itália, em 2016. Quando voltou, a casa na Bahia não era mais sua. Optou por não voltar para seu apartamento em Belo Horizonte, que hoje está alugado. “Quando me deparei com aquela situação, fiquei um ano morando em Salvador tentando entender o que tinha acontecido. Fiquei morando um ano no Ibis. É bom morar no Ibis? Não. É horrível, mas estou acostumada”, desabafou. Disse que teve três AVCs nesse ínterim, aflita com a tomada de sua residência.

Em outubro de 2016, o juiz Ivo Daniel Povoas de Souza assinou uma decisão afirmando, categoricamente, que a Casa das Cobras não podia ser considerada um bem de família. “Não é demais registrar, ainda, que ao contrário do que foi alegado (por Nora Rabello), a certidão (do oficial de Justiça que foi à casa) deixa absolutamente claro que o imóvel que foi objeto da arrematação não era utilizado como residência de quem quer que seja. O imóvel, aparentemente esquecido, estava servindo como depósito e esconderijo de alguns bens (de Nora), e se tratava de um patrimônio por ela escondido, camuflado ou omitido das demais autoridades judiciais e do Banco Central, tanto assim que não foi citado em outros processos”, disse.

Nora seguiu recorrendo. Quando os advogados do escritório Siqueira Castro assumiram o caso, porém, algo saltou aos olhos. O comprador da casa, Tassizo Carletto, é ex-prefeito de Itamaraju, cidade a cerca de 150 km de Porto Seguro. Seu pai, Ronaldo Carletto (PP-BA), é deputado federal e empresário do setor de transportes. Em redes sociais, o deputado aparece, em diversas ocasiões, em fotos ao lado da juíza Andrea Schwarz. São amigos. Em 2013, Ronaldo Carletto deu um prêmio em homenagem à juíza em um evento na Assembleia Legislativa da Bahia.

As contas de Ronaldo Carletto foram reprovadas quando se candidatou a deputado federal, em 2014, e ele já foi denunciado por crime contra o sistema financeiro pela compra de um imóvel abaixo do preço de mercado. Ele é sócio da viação Rota Transportes com o irmão, Paulo Carletto. É a empresa em que trabalha Tassizo. Paulo Carletto foi preso em 2009 sob a acusação de pagar propina para uma agência estadual de transportes. A defesa de Nora viu nisso elementos que põem em xeque a isenção da juíza que ordenou o leilão.

“A minha casa é muito linda, o senhor deputado passou por cima de helicóptero e quis comprar”, acusou Nora. “Sem um homem pra tomar conta de você, acham que podem te atacar, roubar sua casa. Como não tinha o banco para me proteger, aconteceu isso”, argumentou. Os advogados entraram com uma representação no Conselho Nacional de Justiça contra a juíza Andrea Schwarz, mas a queixa foi arquivada em novembro. O ministro Humberto Martins, responsável pelo caso, não viu problema.

“A documentação (…) não evidencia a parcialidade da magistrada Andréa Schwarz de Senna Moreira; (Nora) não atuou, com o cuidado que o caso exigia, para defender o seu patrimônio; apesar de regularmente notificada, nada (fez); permaneceu inerte quando notificada (…) da inclusão do bem em hasta pública; a requerente deveria, na oportunidade, comprovar a quitação do acordo (com o trabalhador)”, disse Martins.

O empresário baiano também não vê problema. “Ela tinha outros imóveis no imposto de renda dela. Você não escolhe o bem de família, ele tem que ser declarado em cartório, e efetivamente ela teve outros imóveis”, diz Tassizo. As acusações, para ele, são “fantasiosas” e “caluniosas”. “As absurdas, ardilosas e ilegais empreitadas da sra. Nora Rabello na imprensa, tentando denegrir a minha imagem e a da minha família, serão também objeto das medidas judiciais cabíveis”, disse o filho do deputado.

“O leilão fora realizado com ampla divulgação, com a participação de várias pessoas, inclusive sendo transmitido ao vivo pela internet, podendo ter lances virtuais, com diversos bens arrematados, tendo sido realizado fisicamente em local diverso da cidade em que o bem está localizado e presidido por juiz da hasta pública da capital. Arrematei o imóvel de forma legal e não houve qualquer ato irregular”, disse Tassizo.

Procurado, Ronaldo Carletto não quis se pronunciar. Através de um assessor, afirmou que o assunto diz respeito somente a seu filho. A advogada Karina Salemi também não respondeu aos contatos da reportagem. Os advogados de Nora não negam que, depois da desastrada condução do processo, é muito difícil que Nora Rabello recupere o imóvel que diz ser sua casa. Alegam que a advogada, Salemi, teria feito um conluio com a juíza e o filho do deputado para tomar o imóvel de Nora. O caso tramita agora no Tribunal Superior do Trabalho (TST), em Brasília.

A juíza Andrea Schwarz encaminhou a decisão do CNJ à reportagem. Nesta, a magistrada argumentou que as fotos com o deputado mostram “tão somente a integração (da juíza) no seio de sua comunidade jurisdicional (a cidade)”. Depois de analisar a representação contra Schwarz, a desembargadora Dalila Andrade, da Bahia,  responsável pelo caso, decidiu que não havia nada que colocasse em xeque a isenção da juíza. Considerou também  que Nora Rabello foi negligente, já que deixou sua casa ser levada a leilão e perdeu os prazos do processo para quitar a dívida e para comprovar que a mansão era, de fato, um bem de família.

“Se eu fosse desesperada, ia me matar”, disse Nora. “Superei, com treze anos de terapia, um monte de homens que não quiseram ficar comigo. Diziam que minha bisavó é de aço, e eu sou que nem ela. Minha família é de professores, somos simples. Não sabia que era possível tomarem minha casa. Lá estão minhas calcinhas, minhas louças. É claro que não posso desistir de ter minha casa de volta.”

Ela não teve, até hoje, acesso à herança da mãe ou à sua parte na liquidação do banco, e diz hoje, aos 60 anos, viver do aluguel de seu apartamento em Belo Horizonte. Kátia voltou a falar com ela há um ano. Segundo Nora, a irmã ficou “estranha” após o processo do Mensalão. “Temos tido uma relação de amizade, fomos enterrar juntas as cinzas de mamãe no Cemitério de Bonfim”, disse. Nora tem muito a contar sobre o esquema de corrupção de que sua família fez parte, afirma —mas foi proibida pelos advogados.



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