É difícil associar Donald Trump a Miguel de Cervantes, e mais difícil ainda associar qualquer expressão verbal do presidente americano ao estilo de “Dom Quixote”. Ainda assim, esta semana, o ocupante da Casa Branca falou de moinhos de vento com um grau de desvio da realidade só comparável à do cavaleiro fictício assombrado pelas gigantescas pás rodantes encontradas no caminho.
Foi num discurso para o Partido Republicano que Trump nomeou as turbinas de energia eólica — os moinhos de vento dos dias de hoje — como o mais novo inimigo da propriedade privada, da saúde humana e da vida animal. Numa sucessão de enunciados fáceis de serem repetidos e tomados como verdades por ouvidos crédulos, ele afirmou: “Se você mora perto de um moinho destes, a sua casa passa a perder 75% do valor”, “Os moinhos geram verdadeiros cemitérios de aves”, “Alguém também me disse que o ruído dos moinhos provoca câncer”.
Havia um emaranhado de interesses por trás dessa nova trincheira, sustentada na determinação de nada ceder a políticas ambientais de energia não fóssil. Havia também rancor pessoal: quatro anos atrás Trump fora condenado a aceitar a instalação de várias dessas odiadas turbinas eólicas nas proximidades do seu campo de golfe de Aberdeen, na costa da Escócia.
Mas o que inquieta, no caso, é a sedutora simplificação verbal de questões complexas como a dos muitos impactos de geradores eólicos, alvos de estudos e levantamentos permanentes mundo afora. Condenar o seu uso, assim como o de vacinas, é treva. Simplificações e reducionismos têm alto potencial multiplicador em tempos de medo.
Pelo menos neste quesito, o presidente Jair Bolsonaro ainda é um discípulo pouco promissor de Trump. Mesmo para seguidores convictos, torna-se difícil alinhar o passo quando o Mito brasileiro embaralha palavras e gestos, como na recente viagem a Israel “…Não interessa quem está na frente ou atrás, se é maior ou menor, se é magrinho ou gordinho, o importante é que quem está atrás confia em quem está na frente. E eu, que estou na frente ou no meio, confio em quem está na frente. Isso desperta a confiança entre nós…”, discursou para uma plateia de atônitos empresários. Já em território nacional, mais à vontade, Bolsonaro esclareceu não ter nascido para ser presidente, apenas para ser militar. Poderia ter avisado antes.
Vive-se tempos em que o ministro da Educação anuncia para 209 milhões de brasileiros a necessidade de mudanças no conteúdo de livros didáticos para deletar a existência do golpe militar de 1964. Tempos em que o americano Steve Bannon, guru do nacionalismo ideológico de Trump e Bolsonaro, proclama que o vice-presidente deste mesmo Brasil deveria renunciar. Tempos em que a sociedade como um todo parece tatear para encontrar alguma verdade.
Momento oportuno para ler a obra do repórter polonês Witold Szablowski intitulada “Dancing Bears: True Stories of People Nostalgic for Life Under Tyranny” , sobre povos e pessoas nostálgicas de regimes tirânicos. Aterrador e original, o livro é dividido em duas partes. Na primeira, o jornalista descreve a trajetória de ursos mantidos em cativeiro para uso pessoal e circense na Bulgária, até a posterior alforria e difícil adequação à “liberdade” em reservas animais. A segunda parte descreve o cotidiano de vários países da antiga órbita soviética em sua transição do comunismo à democracia.
É fascinante a história dos ursos dançantes revisitada pelo autor. Por tradição secular só interrompida com a implosão do comunismo, famílias de ciganos assentadas na Bulgária domesticavam filhotes de ursos e ensinavam-nos a dançar em condições cruéis. Com as duas patas traseiras pisando em chapas de metal quente, o resto do corpo permanecia erguido. Eram puxados pelas ruas das aldeias por uma corrente que lhes atravessava as narinas, parte mais sensível do animal, e exibidos em feiras, farras e labutas. Aprenderam a viver em condições humanas, comendo pão e bebendo álcool, e eram submetidos a trabalhos contínuos, roubando-lhes a inclinação natural à hibernação no inverno. Desaprenderam a ser ursos. Foi extremamente difícil ensinar liberdade a animais que jamais foram livres. Alguns desses ursos chegavam a erguer o corpanzil para equilibrar-se em duas patas quando se deparavam com humanos. Tornaram-se nostálgicos da tirania, assim como os personagens da segunda parte do livro.
Alegoria ou parábola, uma edição brasileira da narrativa de Szablowski seria bem-vinda.