Em todos os depoimentos que deu desde a redemocratização da Argentina, ela contou que durante os cinco meses em que esteve presa na Escola de Mecânica da Marinha (Esma, na sigla em espanhol), principal centro clandestino de detenção da ditadura que governou o país entre 1976 e 1983, fora vítima de “torturas”, sem entrar em detalhes. Hoje, aos 65 anos e na esteira dos movimentos de emponderamento feminino em seu país e no mundo, Ana Testa entendeu e conseguiu expressar com todas as letras o que ela, como muitas outras, sofreu: “abusos sexuais”.
Para mostrar esse lado até hoje não abordado de uma das etapas mais violentas da História argentina foi inaugurada recentemente a exposição “Ser Mulheres na Esma”, no mesmo lugar onde Ana foi torturada com choque elétrico nos seios e na vagina, partes de seu corpo que também receberam golpes quase diários, segundo contou em entrevista ao GLOBO.
A mostra, que em princípio ficará aberta até o próximo dia 14 de junho no Museu da Esma, em Buenos Aires, transporta os visitantes aos porões da ditadura e à rotina sinistra que deviam suportar as mulheres que passaram por eles. Ana, que militou no movimento Montoneros (braço armado da esquerda peronista), foi sequestrada em 1979 e liberada em 1980. Era o começo de uma fase menos sangrenta, durante a qual alguns dos que foram presos conseguiram sobreviver. Entre 1976 e 1978, o número de desaparecidos, homens e mulheres, foi expressivamente maior. No entanto, Ana lembra que das cinco mulheres que estavam juntas no sótão da Esma onde opositores da ditadura eram recluídos e torturados apenas duas não desapareceram.
— Durante mais de 30 anos não me referi ao que sofri como abuso sexual. Para mim era simplesmente tortura. Aprendi com as jovens, as que lutam pelos direitos das mulheres, o que os militares realmente fizeram com as mulheres e foi sinistro — disse Ana, que tem uma filha de 43 anos e uma neta de 14.
Ela lembrou que nos primeiros anos do regime militar a agressividade contra as mulheres alcançou níveis tenebrosos:
— Sei de companheiras que foram estupradas por mais de cinco homens ao mesmo tempo. Hoje, as que podem falar porque tiveram o privilégio da vida, estão falando com a força que nos deram as jovens.
Em 2010, a advogada argentina Carolina Varksy, do Centro de Estudos Legais e Sociais (Cels), fez a primeira denúncia judicial por delitos sexuais cometidos durante a ditadura. Desde então, este tipo de delito é considerado, se cometido durante os anos de chumbo, crime de lesa-Humanidade.
— Somente agora conseguimos pensar sobre o que nos aconteceu desde uma perspectiva de gênero e entender as sequelas que esses abusos tiveram em nossas vidas — assegurou Alejandra Naftal, curadora da exposição e também sobrevivente da ditadura.
Ela esteve no centro clandestino de detenções Vesúvio, na província de Buenos Aires. Foi sequestrada em 1978, com apenas 17 anos e depois de ter militado brevemente no movimento estudantil. Durante um ano teve de suportar estupros permanentes.
— Como comentaram outras mulheres, entrávamos pela mesma porta dos homens, mas éramos tratadas de maneira totalmente diferente. Naquela época, não existia uma discussão sobre gênero. Éramos mulheres-objeto — disse Alejandra, que é diretora do Museu Sitio de Memória da Esma.
Repressão diferente para homens e mulheres
A iniciativa de fazer uma mostra sobre as presas políticas da Esma surgiu de integrantes de movimentos feministas como o Nenhuma Menos, nascido em 2015 para denunciar casos de feminicídios e hoje com projeção internacional. Mulheres jovens que chegavam ao Museu da Esma, comentou Alejandra, “queriam saber como tinha sido a experiência feminina na época da ditadura”.
— Foi assim que montamos uma exposição baseada em depoimentos judiciais de sobreviventes, fotos e unindo tudo isso ao presente e a lemas como “Vivas nos queremos”. O presente trouxe o passado de volta, e esse passado voltou com novos contornos — explicou a diretora do museu.
A mostra já um sucesso, sobretudo entre o público feminino. Paralelamente são organizados debates, eventos diversos e palestras com advogadas, especialistas em temas de gênero e representantes de ONGs locais.
Pela primeira vez, as sobreviventes da ditadura argentina estão pensando e compreendendo o quanto foi diferente a repressão a homens e mulheres. Dos estupros coletivos às torturas perversas em órgãos genitais, utilizando até mesmo, revelou Ana, matéria fecal. Mas a diferença também estava em detalhes, ampliou a sobrevivente da Esma:
— No refeitório que tínhamos no sótão, os militares traziam vinhos e jogos de mesa, mas somente convidavam homens. Nós, mulheres, podíamos apenas comer e tínhamos de retornar aos cubículos nos quais estávamos confinadas.
A palavra tortura, coincidiram Ana e Alejandra, é insuficiente para descrever os tormentos sofridos pelas presas políticas argentinas. Muitas foram sequestradas estando grávidas e tiveram seus filhos em delegacias de polícia, hospitais clandestinos ou simplesmente em alguma salinha improvisada nos centros de detenção. Essas crianças foram roubadas e a grande maioria dessas mulheres, assassinada.
— Dentro da Esma a questão de gênero funcionava da mesma maneira que do lado de fora, só que com uma crueldade sem fim. Mesmo sem penetração, conversando com jovens que poderiam ser minhas netas, compreendi que fui abusada sexualmente — concluiu Ana, que com a democracia construiu uma vida nova, tornou-se arquiteta e especialista na construção de gasodutos.