A conta para as instituições de ensino superior privadas acaba de ficar um pouco mais leve. O governo publicou nesta quarta-feira (11) uma portaria que aumenta de 20% para 40% a fatia da grade curricular que pode ser oferecida a distância, mesmo nos cursos presenciais.
Assim, no limite, um curso considerado presencial poderia ter, de cinco dias de aula na semana, dois remotos e somente três presenciais. A portaria, de número 2.117/19, é de autoria do Ministério da Educação (MEC) e assinada pelo ministro da pasta, Abraham Weintraub.
É uma rara boa notícia para os grandes grupos de educação brasileiros, que, nos últimos dois anos, vinham sofrendo em meio à redução dos financiamentos oferecidos pelo governo federal junto ao Fies — fundo de financiamento estudantil em que o governo garante o pagamento das mensalidades, e o aluno paga com juros subsidiados após se formar.
O programa foi amplamente reduzido a partir de 2016 e reformulado no governo do ex-presidente Michel Temer. De 2014 a 2018, o número de estudantes financiados pela União caiu de 733.000 para 82.000 ao ano.
O mercado financeiro respondeu imediatamente às mudanças, e as ações dos grupos de educação privados listados na bolsa passaram a quarta-feira em forte alta. Os papéis da Cogna (ex-Kroton) e da Yduqs (ex-Estácio) fecharam o pregão de quarta-feira subindo 7,08% e 4,25%, respectivamente. Fora do Ibovespa, principal índice da bolsa, os papéis da Ser Educacional avançaram 7,57% e as da Anima, 2,31%.
Uma medida na direção do aumento da grade a distância já havia sido tomada no governo Temer. Em dezembro do ano passado, uma outra portaria (de número 1.428/18) estabelecia o aumento de 20% para 40% na carga horária a distância permitida. Mas uma série de restrições que praticamente inviabilizavam a entrada da maioria das instituições e cursos no formato.
Para aumentar a carga remota, os cursos precisavam, por exemplo, ter nota 4 no Enade (exame que mede o desempenho de alunos das instituições de ensino superior), considerada alta, uma vez que o índice do exame vai de 1 a 5. Outra restrição que barrava muitas instituições era que todas precisavam ter, além de nota suficiente, autorização para operar também na modalidade de educação a distância (EaD) — a autorização de EaD e de cursos presencias é dada de forma separada e com regras diferentes pelo MEC.
Assim, cada curso de uma instituição teria de correr atrás de duas aprovações diferentes no MEC, o que é custoso e complexo, segundo os especialistas ouvidos pela reportagem. Agora, ficou mais fácil para as instituições participarem da flexibilização.
Pelo lado financeiro, as vantagens das novas regras são inegáveis. Na teoria, ter uma maior parte da carga a distância faz o custo das aulas diminuir, com menor carga horária necessária para os professores — uma vez que ou as aulas são gravadas ou, em aulas ao vivo a distância, o mesmo professor consegue comportar um maior número de alunos.
As novas regras são consideradas uma das maiores mudanças de rumo na política educacional privada nos últimos anos por passar a permitir uma boa porcentagem de aulas a distância mesmo para cursos até então proibidos na modalidade EaD, como Direito e cursos da área de saúde, como Psicologia e Odontologia. Medicina foi a única exceção à regra, e, somente nos cursos dessa graduação, não será permitida carga de 40% a distância.
Organizações como o Conselho Federal de Medicina ou a Ordem dos Advogados do Brasil historicamente se manifestam contra graduações a distância em suas respectivas áreas. Não é permitido, por exemplo, oferecer cursos 100% a distância em Direito — um curso que é um dos mais rentáveis do país, por ser um dos mais procurados pelos alunos e ter mensalidades tradicionalmente altas. Contudo, como a nova regulação estabelece maior tempo para aulas a distância dentro dos próprios cursos classificados como presenciais, o leque de oportunidade se abriu para as instituições.
Um relatório do banco UBS aponta uma possibilidade alta entre 2,5 e 3,5 pontos percentuais na margem de lucro das instituições listadas na bolsa, no longo prazo e em um cenário conservador. A consultoria Atmã Educar, especializada em ensino superior, aponta que uma instituição, caso de fato chegasse aos 40% máximos permitidos de carga a distância, reduziria seus custos com folha salarial dos professores em 30%.
Os cursos na modalidade híbrida também têm a vantagem de poderem contar com o Fies, ainda que o financiamento esteja mais enxuto. O Fies não permite financiamento para alunos que desejam cursar ensino a distância.
Contudo, mesmo os cursos híbridos, cada vez menos presenciais com a portaria desta quarta-feira, poderão aceitar alunos do programa — que, dentre suas vantagens para a instituição, tem as mensalidades garantidas pelo governo federal, uma vez que o aluno só paga após terminar o curso.
Outra vantagem para as instituições, ainda que não diretamente financeira, é a publicidade, afirmam os especialistas. Antes, um curso que tinha mais de 20% da carga a distância não poderia ser considerado “presencial”, e teria de se enquadrar perante o MEC — e se vender perante os alunos — como curso EaD.
“Ainda existe um grande preconceito com cursos EaD. Ao poder aumentar a carga de virtualização e continuar sendo considerados presenciais, os cursos conseguem manter uma boa imagem na hora de atrair alunos”, diz Romário Davel, da Atmã Educar. “O problema será em como reter esses alunos ou reter os aluns que já estão estudando caso a instituição decida mudar o formato do curso no meio do caminho”, diz.
Para as empresas, resultado é de longo prazo
Como é uma portaria, a medida entra automaticamente em vigor. A questão é quando as instituições de ensino superior vão começar a implementar mudanças em seus cursos. A portaria do MEC estabelece poucas regras objetivas, mas, dentre elas, aponta que os cursos precisarão ter critérios técnicos adequados para as aulas a distância, além de projeto pedagógico aprovado pelo MEC.
Assim, analistas do mercado financeiro ouvidos por EXAME apontam que a alta das ações dos grupos de educação foi uma resposta do mercado a uma expectativa de ganho no longo prazo. Algumas instituições devem começar a testar os aumentos de carga remota parcialmente, sobretudo nos ingressantes no segundo semestre de 2020. O grosso das mudanças, contudo, deve ficar começar plenamente somente em 2021.
Os cursos na modalidade 100% a distância costumam ter mensalidades mais baratas, vestibulares mais fáceis (ou inexistentes) e uma flexibilidade que apela aos alunos que precisam trabalhar e podem, assim, estudar no tempo que puderem. Agora, parte dessas características estará mais presente também nos cursos considerados presenciais, o que os defensores da portaria do governo consideram um aspecto positivo.
A mensalidade média no ensino superior privado no Brasil é de cerca de 800 reais, segundo levantamento da consultoria Hoper Educação, mas algumas faculdades mais tradicionais com ensino presencial podem cobrar mais de 3.000 reais ao mês. Em cursos como direito ou medicina, o preço facilmente supera os 8.000 reais nos grandes centros, como São Paulo e Rio de Janeiro.
Neste cenário, caso os cursos “híbridos”, presenciais mas com parte da grade a distância, consigam manter as mensalidades baixas enquanto as outras faculdades sobem seus preços, podem ter um diferencial competitivo.
Esse avanço de grade EaD tende a beneficiar sobretudo as grandes redes, com mais capacidade de investimento e que já expandiram sobremaneira seus polos de ensino a distância nos últimos anos. A Yduqs foi de 228 polos no primeiro trimestre de 2017 para 635 no primeiro trimestre deste ano. A Ser, que tinha apenas 15 polos EaD há dois anos, hoje tem 246; a Cogna tinha 910 polos no início de 2017 e hoje conta com 1.410; e a Cruzeiro do Sul passou de 150 para 780 no mesmo intervalo. Os planos de expansão das grandes redes continuam, por ora. A Cogna agora pretende chegar a 1.510 polos até o fim do ano. A Yduqs tem a meta de 1.000, assim como a Cruzeiro do Sul. Na Ser, a diretriz é abrir 100 polos ao ano.
As três instituições, as maiores do país, perderam alunos nas aulas presenciais com o fim do Fies, e devem continuar perdendo. A Yduqs já teve 43% de seus alunos presenciais do Fies e tem hoje cerca de 17%, segundo dados deste ano. Na Cogna, a participação caiu de 52% para 17%.
“Essa nova portaria definitivamente vem como uma boa notícia para as empresas, que agora podem mais facilmente aumentar seu número de alunos, mas tendo proporcionalmente um menor investimento com parte das aulas a distância”, diz um analista.
Como ficam os alunos?
A educação a distância é grande responsável pela alta no número de alunos ingressando no ensino superior nos últimos anos. O número de novas matrículas na última década subiu 51% na EaD entre 2008 e 2018, ante alta de 11% na educação presencial no mesmo período, segundo o último Censo da Educação Superior, divulgado pelo governo federal.
O censo aponta que o total de vagas oferecidas na EaD passou as ofertas em educação presencial pela primeira vez na história em 2018. Agora, as próprias ofertas presenciais terão em si uma grande parte de ensino a distância, misturando as estatísticas.
Defensores de ter parte do curso a distância avaliam que a educação remota evoluiu no país nos últimos anos e que a qualidade de boa parte dos cursos hoje é equiparável — ou superior — às modalidades presenciais. Levantamento da Atmã com resultados do Enade entre 2015 e 2016 em 21 cursos em que a modalidade 100% EaD já estava mais estabelecida (como técnicos e ciências humanas, como administração, contabilidade e economia) mostra que, em mais da metade dos cursos privados, a modalidade a distância teve nota alguns décimos maior do que o curso presencial.
Na única vez em que a palavra “estudante” aparece na portaria desta quarta-feira do MEC, o texto afirma que eventual mudança no curso presencial deve ser “amplamente informada” aos alunos, devendo ser identificados “os conteúdos, as disciplinas, as metodologias e as formas de avaliação” do curso. A necessidade de ampla informação vale tanto para os já matriculados quanto para os processos seletivos que trarão os futuros alunos.
O número de estudantes cursando o ensino superior no Brasil aumentou 44,6% nos últimos dez anos, entre 2008 e 2018. Em 2018, cerca de 8,45 milhões de pessoas estavam cursando a educação superior (a maioria, 75%, em instituições privadas). Ainda assim, só 18% dos jovens brasileiros de 18 a 24 anos frequentam cursos de ensino superior. A média da OCDE, grupo de países ricos, é de 44% de diplomados no ensino superior entre 25 e 34 anos. A meta do Plano Nacional de Educação é chegar a 33% de presença até 2024 e defensores do ensino a distância afirmam que só com aulas remotas será possível chegar a um nível de escolaridade semelhante a de países desenvolvidos.
Por outro lado, em um país como o Brasil, em que sete em cada dez alunos do último ano do ensino médio não têm nível suficiente em português e matemática, a discussão sobre o papel do ensino superior torna-se um pouco mais complexa. Na edição 2017 do Saresp, prova que avalia os alunos da rede estadual de São Paulo, que está entre as melhores do país, 70% dos alunos do ensino médio da capital paulista e região metropolitana não atingiram a proficiência adequada em português.
Segundo o Inaf, índice que mede o chamado analfabetismo funcional, 29% dos brasileiros entre 15 e 64 anos é considerado analfabeto funcional — isto é, não conseguem compreender e interpretar um texto, segundo o estudo da ONG Ação Educativa e do Instituto Paulo Montenegro. Quatro em cada dez dos analfabetos funcionais têm menos de 39 anos.
Assim, críticos à flexibilização das possibilidades de ensino a distância afirmam que aumentar o número de vagas em cursos, sem exigências mais rigorosas acerca de sua qualidade, pode levar milhões de jovens a se formar em cursos deficitários. Além disso, dado um público com maiores deficiências curriculares no ensino básico público que esses cursos com mais aulas a distância precisarão atender, ficaria mais difícil para que esses alunos consigam ter a disciplina e as competências básicas para estudar sozinhos em quase metade do curso, como estabelece a nova norma.
A distância ou presencialmente, a educação é uma discussão de interesse nacional — e não só dos acionistas.
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