De 1964 aos dias atuais: nos reservados círculos militares, o golpe nunca deixou de ser comemorado

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O aniversário de 31 de março de 1964, data que instalou uma ditadura militar no Brasil, saiu do calendário oficial de comemorações das Forças Armadas apenas em 2011, no governo da ex-presidente Dilma Rousseff — que foi torturada por militares quando foi presa pelo regime, em 1970. Até então, na ordem do dia nos quartéis do país, comandantes costumavam fazer discursos exaltando o que chamam de “revolução”. No próximo dia 31, por ordem do presidente Jair Bolsonaro, as “comemorações devidas” devem voltar a ocorrer oficialmente. Segundo o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, os eventos serão “intramuros”: leitura da ordem do dia, palestras e formaturas militares.

Discretamente, no entanto, as celebrações nunca deixaram de acontecer. Nas décadas de 1960 e 1970, houve festanças públicas. Depois, os discursos exaltados nos quartéis e a publicação de materiais históricos pelo Exército. Nos últimos anos, as comemorações foram discretas, restritas aos clubes militares. Permaneceram, porém, no calendário de oficiais da reserva e de apoiadores do regime.

Anos 70

Até meados da década de 1970, segundo historiadores, a lembrança de 31 de março de 1964 era comemorada de maneira positiva. O ápice das celebrações ocorreu em 1972, no governo de Emílio Garrastazu Médici. A comemoração dos 150 anos da independência do Brasil tornou-se também a festa do oitavo aniversário do golpe. Os generais presidentes — Castelo Branco, Costa e Silva e Garrastazu Médici — estampavam os selos comemorativos do Sesquicentenário e do oitavo aniversário da “Revolução de 31 de março”. Encontros Cívicos Nacionais foram realizados nas principais capitais do país, e também em cidades menores do país. No Espírito Santo, uma propaganda do governo estadual dizia “Feliz Brasil/ 31 de março de 1972/ 8 anos presente”.

“A partir da mobilização de uma ideia-chave comemorava-se os oito anos do golpe – Revolução, para quem comemorava – de 1964. A felicidade estava diretamente relacionada aos novos rumos tomados pelo país desde aquele 31 de março”, conta a historiadora Janaína Cordeiro em seu artigo “Lembrar o passado, festejar o presente: as comemorações do Sesquicentenário da Independência entre consenso e consentimento (1972)”.

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Em 1974, no aniversário de 10 anos do golpe, a busca era pela reafirmação da ideia de um Brasil próspero. As comemorações chegaram às grandes capitais e também às pequenas cidades pelo país. Em Itupeva, interior de São Paulo, por exemplo, um
decreto
que constituiu uma comissão para cuidar dos festejos, afirmava: “toda a nação se prepara para as festividades comemorativas ao dia 31 de Março de 1974, data que assinalará o 10º Aniversário da Revolução de 1964 e terá como lema ‘DEZ ANOS CONSTRUINDO O BRASIL’”. Nas escolas, palestras e reflexões
enfatizavam
a importância do acontecimento para “democracia” brasileira. Adesivos foram confeccionados com as imagens dos presidentes do regime.

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Comemoração do dia 31 de março, data do golpe militar, em 1975 Foto: Márcio Arruda / Márcio Arruda

 

Mas foi justamente durante esse período, conta a historiadora Lucileide Cardoso, autora do artigo “Os discursos de celebração da ‘Revolução de 1964’” e do livro “Criações da Memória: defensores e críticos da ditadura (1964-1985), que o “tom ecumênico” que revestiu a “revolução de 64” passou a ser substituído por discursos mais ressentidos e queixosos dos militares. “O tom glorioso e bastante ufanista que vem desde a década de 1960 muda com a emergência das memórias das vítimas, o crescimento do movimento pela anistia e as denúncias dos presos”, explica.

Anos 80

A partir de então, as festividades começaram a se restringir ao âmbito militar e seu entorno (discursos militares, missas e homenagens às vítimas da subversão). Segundo Lucileide, o Clube Militar do Rio de Janeiro tornou-se o ‘porta-voz’ oficial da memória dos militares golpistas. Além de pronunciamentos, o lugar deu lugar a uma série de outros eventos comemorativos: missas, festas, cursos, e homenagens. Eles começaram, no entanto, a ser enfrentados pelos familiares de mortos e desaparecidos, ex-militantes da esquerda armada e estudantes, entre outros.

Os aniversários também tornaram-se efemérides para a produção de materiais – livros, artigos, panfletos comemorativos, etc – que resgatavam a matéria da data. Em 1984, por exemplo, na comemoração dos 20 anos, o general Walter Pires de Carvalho e Albuquerque, ministro do Exército do governo Figueiredo, publicou um artigo comemorativo, com um álbum de fotos anexo, e um cartaz do Exército Brasileiro dividindo com uma tarja preta a história do Brasil: de um lado, 1964; do outro, 1984; no meio, os seguintes dizeres: “A Democracia que construímos é fruto de um trabalho apoiado na verdade e, como tal, tem dividendos assegurados. É sólida e duradoura, capaz de se defender”.

No fim da década de 1980, o desgaste entre os militares e os críticos ao regime já era grande. Em 1987, o general Tasso Villar Aquino criticou grupos de esquerda que reagiram indignados ao ato comemorativo do 23º aniversário da ‘revolução de 64’, realizado pelo Clube Militar. Isso não impediu que as comemorações continuassem, ainda que de maneira mais discreta. No 25º aniversário do golpe, o quartel do I Batalhão de Polícia do Exército foi palco de homenagens, com outorga de condecorações a militares e civis. Os Clubes Militar, Naval e da Aeronáutica patrocinaram uma missa pelos 25 anos da Revolução Democrática Brasileira, realizada na Igreja da Santa Cruz dos Militares.

Anos 90

Na década de 1990, o Brasil já vivia um período democrático, após a eleição direta do ex-presidente Fernando Collor, em 1989. “Desde a redemocratização, as comemorações são bem discretas e ficam muito restritas aos meios militares. Mesmo em datas redondas, como em 2004, durante as comemorações dos 40 anos do golpe, as ‘homenagens’ não tiveram grandes repercussões”, conta Janaína.

Ainda assim, a data foi lembrada na Câmara dos Deputados. Em discurso, o deputado Alberto Fraga foi à
tribuna
“reverenciar a memória das vítimas das ações insanas de terroristas da esquerda revolucionária”. “Não quero falar sobre o que ocorreu após a Revolução de 1964: torturas, prisões, excessos. É bem verdade que isso incomoda as próprias Forças Armadas. Não estou defendendo a ditadura militar, mas o Movimento de 1964 merece o respeito de V.Exas., da sociedade, da mídia e do Congresso Nacional”, afirmou.

O presidente Jair Bolsonaro, à época deputado, também deu sua contribuição. “Caso os militares não tivessem aniquilado a Guerrilha do Araguaia, hoje em dia teríamos no coração do Brasil, assim como tem a Colômbia, uma FARC. Parabéns pelo pronunciamento, Deputado Alberto Fraga. Sei que no próximo pronunciamento V.Exa. falará das conseqüências positivas do regime militar”, disse.  Ele também participo de uma reunião com militares e seus familiares em Brasília na noite do dia 30 de março, um dia antes da comemoração dos 40 anos do golpe militar.

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Em 2004, o então deputado Jair Bolsonaro discursa um dia antes da comemoração dos 40 anos do golpe militar Foto: Givaldo Barbosa / Givaldo Barbosa

Anos 2000

Com as festividades limitadas, nas décadas de 1990 e 2000 os militares dão início um projeto de recuperação de suas memórias, conta Lucileide. Depois de entrevistar  210 militares e 40 não militares (desembargadores, engenheiros, jornalistas e professores, entre outros profissionais), eles publicam uma coleção de 15 volumes contendo, em média, 350 páginas cada um. “Esse grande projeto não está isolado de uma série de outras iniciativas que se mantém, além do Clube Militar, como ‘lugar de memória’”, explica.

É também em 2000 que chegam à internet clandestinamente páginas da obra “As Tentativas de Tomada do Poder”, uma resposta ao livro “Brasil Nunca Mais”, escrito por Paulo Evaristo Arns e publicado em 1985, após o fim do regime militar, denunciando torturas e assassinatos de presos políticos. O livro dos militares, que foi concluído em 1988, não foi publicado à época e passou a circular entre militares da reserva rebatizado de “Livro negro do terrorismo no Brasil”. “A partir dos anos 90, há uma disseminação de sites de memórias. Os militares vão ocupar o lugar não só nos livros, palestras e comemorações, mas na internet”, conta Lucileide.

Até 2010, no site das Forças Armadas o dia 31 de março ainda constava na lista de datas comemorativas. Foi retirada em 2011.A palestra do general-de-exército Augusto Heleno, então diretor do Departamento de Ciência e Tecnologia, sobre “A contrarrevolução que salvou o Brasil”, foi cancelada naquele ano por determinação do ministro da Defesa, Nelson Jobim — como ele já era ministro de Lula, a ordem foi atribuída a Dilma.

Ainda assim, no Clube Militar, as comemorações continuaram. Em seu site, há registros de comemorações até o ano passado, no 54º aniversário do golpe. “O Espaço 18 ficou repleto de velhos camaradas que, cientes da importância daquele evento histórico para a manutenção da democracia no Brasil, aderiram ao ato comemorativo, orgulhando-se de irmanados, cantarem o nosso Hino”, diz a
página

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Em 2012, a comeração do golpe de 64 no Clube Militar terminou em pancadaria no Centro do Rio Foto: Marcelo Carnaval / Marcelo Carnaval / Agência O Globo

 

 



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