Assange e os democratas – Época

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Em 2010, quando recebeu da soldado Chelsea Manning os documentos militares e diplomáticos que tornaram famoso o site que criara quatro anos antes, Julian Assange foi convencido pelo repórter Nick Davies, do Guardian britânico, de que o material teria repercussão muito maior se passasse pelo crivo editorial dos jornais de influência global. Assange, um anarquista caótico e paranoico que até então atuava quase solitariamente na busca e divulgação de segredos incômodos para os poderosos, foi persuadido também de que os papéis publicados no WikiLeaks deveriam ser esquadrinhados para não expor nomes citados em situações-limite, ainda que eles os considerasse inimigos.

A parceria foi tão profícua quanto turbulenta. O Guardian propôs e Assange aceitou que o New York Times participasse da empreitada, com o argumento de que a liberdade de expressão era mais bem protegida nos Estados Unidos. O Times, porém, não deixou de zelar pelo que considerava ser do interesse da “segurança nacional” americana, e, como informou depois seu editor na época, Bill Keller, mostrava antes ao Departamento de Estado todos os documentos confidenciais que viria a publicar. Em parte por causa das brigas com o Times e também com o Guardian — embora em um nível menor de animosidade mútua —, Assange ampliou o número de jornais com os quais compartilhou os documentos confidenciais.

Agora, com a revogação do asilo diplomático concedido a Assange pelo Equador em 2012, quando ele estava prestes a ser deportado para a Suécia, onde era acusado de agressão sexual por duas mulheres, revelou-se a denúncia criminal de que o criador do WikiLeaks é alvo nos Estados Unidos. Em uma acusação controvertida, Assange é acusado não de vazar documentos confidenciais — o que seria visto diretamente como uma ameaça à liberdade de imprensa —, mas de conspirar com Manning para desvendar a senha de acesso a um computador do governo americano.

A denúncia, que não contém provas cabais de ciberpirataria, usa esse expediente legal para contornar críticas de que processo representa um risco potencial para a atividade jornalística em geral. A manobra, no entanto, não convenceu especialistas. Eles apontam que a acusação contra Assange descreve um espectro tão amplo de rotinas jornalísticas — convencer a fonte, buscar manter em sigilo a comunicação com ela — que a ameaça continua existindo.

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A diferença é que, agora, Assange deixou de ter a solidariedade maciça do campo político que se identifica com o Partido Democrata americano. Para uma ala importante desse grupo, o fundador do WikiLeaks se tornou um reles hacker manipulado por Moscou quando divulgou, em 2016, e-mails da campanha de Hillary Clinton e do Comitê Nacional Democrata. As mensagens, que segundo promotores americanos foram obtidas por hackers russos, mostram como a cúpula do partido trabalhou para minar a candidatura do senador progressista Bernie Sanders e favorecer Hillary na disputa interna pela candidatura à Presidência.

Hillary e o establishment democrata até hoje insistem em que esse vazamento, ao lado da ação de trolls russos nas redes sociais, foi responsável pela derrota dela para Donald Trump. No entanto, as pesquisas sobre fluxo de informações durante a campanha eleitoral feitas pelo Centro Berkman Klein para a Internet e a Sociedade da Escola de Direito da Universidade Harvard — que já citei em uma coluna anterior, para fugir do subjetivismo na questão — não comprovam a tese da ex-candidata.  Na reta final da campanha, o que pesou mais contra Hillary foi a controvertida decisão do então diretor do FBI, James Comey — um republicano —, de reabrir a investigação sobre o uso por ela de um servidor privado para trocar mensagens de trabalho quando era secretária de Estado.

Se foi mesmo o cérebro da operação de interferência na campanha americana, Putin deve ter gostado do resultado. Na esperança de pegar Trump, parte do Partido Democrata virou um cultor das agências de informação, com todo o seu rol de abusos passados e presentes. Ao proteger o que Trump chama de “Estado profundo”, os democratas acabam lhe dando razão. A atacar o venerável FBI, Hillary prefere atacar Assange. Ao saber da notícia da prisão do ativista, ela comemorou: “Está claro na denúncia que não se trata de punir o jornalismo, mas de ajudar a hackear um computador militar para roubar informação do governo dos Estados Unidos. (…) Ele tem que responder pelo que fez”.

O criador do WikiLeaks nunca escondeu que detestava Hillary, a quem considerava uma militarista. Trump disse que “amava o WikiLeaks” quando o site divulgou os e-mails da campanha da rival. Meses depois, porém, quando postou documentos que mostravam as técnicas usadas pela CIA para hackear computadores, Mike Pompeo — diretor da agência de espionagem na época e hoje secretário de Estado — chamou a organização de “um serviço de inteligência não estatal hostil”.

É inútil exigir de Assange coerência ou fidelidade a uma corrente política. Ao mesmo tempo, não é possível ignorar que seu site, graças em grande parte a Chelsea Manning, trouxe à tona documentos de interesse público, que revelam ações criminosas na chamada “guerra ao terror” e o jogo duplo do governo americano com velhos aliados e aliados de ocasião. Aos democratas, faria bem abandonar o trauma de 2016, e pôr acima dele os princípios da liberdade de expressão e da transparência.

 



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