As mil facetas da Verdade: entrevista com Hector MacDonald

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As verdades são fragmentadas e têm várias facetas. Podem ser usadas para o bem e para o mal. É possível, inclusive, enganar os outros apenas contando verdades. Essas conclusões fazem parte do livro de Hector MacDonald,
Verdade: 13 motivos para duvidar de tudo que te dizem
.

A coluna conversou com o autor do livro, que chega nesta semana ao Brasil, pela editora Objetiva. Queniano radicado em Londres, MacDonald é consultor de comunicação estratégica e debruçou-se sobre o tema das declarações verdadeiras usadas por políticos e comunicadores profissionais para dar uma impressão deliberadamente falsa da realidade. Leia a íntegra da entrevista.

Você fala em tipos diferentes de verdades e também lembra que elas podem ser usadas para mentir ou induzir ao erro. O que são verdades enganosas? Você poderia dar um exemplo na política?

Verdades enganosas são aquelas declarações verdadeiras usadas por políticos e outros comunicadores profissionais para dar uma impressão deliberadamente falsa da realidade. Enquanto disputava a Presidência dos Estados Unidos em 2016, Donald Trump afirmou que 92 milhões de americanos estavam desempregados. Isso parece terrível! Na verdade, é real, mas não da maneira como pensamos. A maioria desses 92 milhões não queria um emprego – eles estavam aposentados, estudando ou criando uma família. Apenas 8 milhões de pessoas procuravam emprego, resultando em uma taxa de desemprego de cerca de 5%. Donald Trump estava encorajando as pessoas a pensar que a situação do desemprego era muito pior, mas ele não mentiu.

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Você sugere que os líderes devem selecionar e apresentar as verdades mais envolventes. Isso também não se trata de um meio de manipulação?

A palavra “manipulação” é muito negativa, mas na verdade a maioria de nós manipula um ao outro na maior parte do tempo, selecionando as palavras que usa a fim de dar uma impressão particular da realidade. Quando publicamos determinadas fotos no Facebook e não outras, estamos “manipulando” a percepção dos nossos amigos sobre nossas vidas brilhantes e bem-sucedidas. Podemos moldar as percepções das pessoas para seu próprio bem ou por um bem maior. Líderes de empresas e outras organizações têm o dever de selecionar a mais construtiva das muitas verdades que poderiam contar, a fim de incentivar e motivar seus funcionários a alcançarem os objetivos que compartilham. Líderes que escolhem as verdades erradas desmotivam sua força de trabalho, prejudicam a organização e potencialmente tiram as pessoas de seus trabalhos.

Se há múltiplas verdades, ou se a verdade tem múltiplos fragmentos e facetas, como definir o melhor critério para saber qual verdade é boa e qual verdade é ruim?

As verdades mais éticas são aquelas que dão uma impressão equilibrada da realidade como a entendemos. Mas pode haver uma boa razão moral para selecionar certas verdades em vez de outras. Por exemplo, um comandante militar que deseja o melhor para seu exército pode precisar subestimar (omitir) certos riscos e perigos a fim de incentivar o desempenho máximo em uma batalha que garantirá a vitória e a segurança para esse exército. Meu teste rápido para uma verdade ética é este: “Será que meu público, se soubesse tudo o que eu sei, concordaria que minha escolha da verdade era do interesse deles e seria uma forma apropriadamente justa de representar a realidade?”. Se a resposta for sim, então estou confiante de que é uma comunicação ética.

Você fala que comunicadores são pressionados e influenciados a usar a verdade de forma enganosa. Quais estímulos levam os comunicadores a isso?

Cada vez mais somos incentivados a atingir metas específicas para nossa empresa ou organização. Os incentivos podem ser financeiros, ou podemos simplesmente estar tentando agradar nosso chefe e cumprir determinadas cotas ou metas. Os comunicadores profissionais não são diferentes: eles respondem aos incentivos estabelecidos por seus superiores – obter uma cobertura favorável, interromper uma história negativa, vender um produto etc. Da mesma forma, políticos e outros líderes em cargos públicos são incentivados a dizer coisas que obterão apoio e a evitar dizer coisas que causem uma reação negativa. A maioria dos comunicadores não quer mentir, mas você pode entender, com tais incentivos, porque muitos são tentados a usar a verdade de forma criativa e enganosa.

Logo no início do livro, você usa o caso da quinoa para mostrar como os comunicadores moldam a realidade de forma a apresentar determinada visão do mundo. Mas no próprio relato que você faz, não parece que esses comunicadores usaram verdades seletivas para induzir as pessoas ao erro ou para enganá-las. A impressão que se tem é que eles realmente acreditavam nas histórias que estavam contando. Você considera que a própria verdade tem uma natureza enganadora e que ela prescinde da atuação de um agente para produzir esse tipo de efeito?

Eu contei a história da quinoa para mostrar como podemos ser enganados pela verdade mesmo quando todos têm as melhores intenções. No livro, eu falo sobre “desinformantes” – pessoas que falam a verdade com a melhor das intenções, mas suas verdades, no entanto, criam uma falsa impressão da realidade. Na Grã-Bretanha, dizemos que eles “pegaram o lado errado do bastão”. Outro exemplo desse fenômeno que eu descrevo no livro é o caso de “canhotos que morrem jovens”. Nesse caso, até mesmo o New York Times foi levado a publicar uma reportagem afirmando que os canhotos têm baixa expectativa de vida pois entendeu errado algumas estatísticas reais sobre a mortalidade dos canhotos.

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Você escreveu este livro no momento em que os conceitos de fake news e fatos alternativos vinham à tona com força total, e o concluiu na sequência de acontecimentos como a eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, e o referendo do Brexit, no Reino Unido. Que influência esses fatos tiveram na concepção do livro?

Menos influência do que você imagina, já que ambos os eventos foram caracterizados por mentiras descaradas. Meu livro é sobre verdade, não mentiras. Há séculos as pessoas têm usado a verdade inteligentemente com o intuito de enganar. Donald Trump e alguns dos defensores do Brexit não pareciam muito interessados na verdade. No entanto, direi que a degradação da narração da verdade tanto nos EUA quanto no Reino Unido torna ainda mais importante que as pessoas entendam como a verdade funciona e onde suas complexidades podem nos desviar para o erro.

Ao abordar principalmente o uso de verdades para enganar, você não acha que acabou dando pouca importância às mentiras?

Todo escritor precisa definir o escopo de seu trabalho e o meu é a verdade. Muitos outros escritores documentaram mentiras, fake news, teorias conspiratórias e assim por diante. Eu elogio o trabalho deles. Mentiras são, naturalmente, extremamente importantes e todos nós devemos estar atentos para detectá-las e combatê-las.

Não é perigoso o argumento de que verdades morais são subjetivas? Isso não pode acabar de alguma forma em um relativismo que justifique todo tipo de ação?

Possivelmente, mas como eu argumento no livro, essa é realmente uma conclusão inevitável. Quando vemos nossas verdades morais variando no tempo e entre as culturas, não há como acreditar que a moralidade é absoluta. Quando morei em Pernambuco, lembro-me de pais respeitáveis que insistiam em que suas filhas fossem virgens até o casamento, mas levavam seus filhos adolescentes para prostitutas. Essa era a moralidade deles. Não era a minha. Minha moralidade nesses assuntos é motivada pela firme crença na igualdade de gênero: o que é certo para os filhos também deve ser correto para as filhas. Você pode reivindicar que haja um único conjunto “correto” de verdades morais estabelecidas por Deus, mas como um ateu e um observador experiente da natureza humana, devo discordar respeitosamente.

Ao fim do livro, você agradece a jornalistas e cita veículos de imprensa como BBC, The Guardian, The Economist, New York Times e Washington Post. Qual é o papel da mídia nesse contexto?

Isso depende da organização midiática. Alguns jornais têm sido profundamente irresponsáveis ao longo de muitas décadas. É graças às verdades enganosas que alguns jornais britânicos publicam há anos sobre a União Europeia que agora existe tamanha hostilidade no Reino Unido. Por outro lado, organizações como a BBC e o Washington Post trabalham arduamente para combater verdades enganosas e fake news, com iniciativas e programas de checagem de fatos (fact-checking). Essas organizações responsáveis fazem um excelente trabalho de desmascarar as verdades enganosas e nos dão uma base sólida de verdade confiável com a qual trabalhar. Infelizmente, a maioria das pessoas agora recebe suas notícias do Facebook, e não dessas organizações mais neutras e responsáveis.

Como você vê os esforços ao redor do mundo na luta contra as fake news?

É importante, mas é improvável que tenha sucesso. Fake news são excitantes e sedutoras demais. Chegar à verdade requer disciplina e esforço, e a maioria das pessoas parece não estar disposta a investir o tempo e a energia necessários para impedir a si mesma de ser enganada. Esse não é um problema novo – notícias ultrajantes sempre receberam mais atenção do que relatos sóbrios da verdade –, mas isso é exacerbado pela fragmentação do negócio jornalístico e pelo absurdo ilimitado que é compartilhado nas mídias sociais.

Como você poderia definir o relacionamento que Donald Trump tem com a verdade?

Trump parece profundamente despreocupado com a verdade. Ele a usa quando conveniente, mas reconhece que uma poderosa mensagem partidária, por mais falsa que seja, sempre seguirá adiante e repercutirá entre mais pessoas do que a verdade objetiva.

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autores-coluna-desk As mil facetas da Verdade: entrevista com Hector MacDonald

Guilherme Amado passou por O Globo, Veja e Extra. Recebeu os prêmios Esso e Tim Lopes de Jornalismo Investigativo. É JSK Fellow na Universidade Stanford, e integrante do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos. Fica entre Brasília, São Paulo, Rio e onde mais houver uma boa história para contar.
Eduardo Barretto passou pelo jornal O Globo e pelos sites Crusoé e Poder360. Colaborou também para a Associated Press e O Estado de S. Paulo. Estudou na Universidade de Brasília e na London School of Journalism. Fica baseado na Capital Federal, onde busca histórias sobre o poder.
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Guilherme Amado passou por O Globo, Veja e Extra. Recebeu os prêmios Esso e Tim Lopes de Jornalismo Investigativo. É JSK Fellow na Universidade Stanford, e integrante do Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos. Fica entre Brasília, São Paulo, Rio e onde mais houver uma boa história para contar.
Eduardo Barretto passou pelo jornal O Globo e pelos sites Crusoé e Poder360. Colaborou também para a Associated Press e O Estado de S. Paulo. Estudou na Universidade de Brasília e na London School of Journalism. Fica baseado na Capital Federal, onde busca histórias sobre o poder.





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