O histórico “fluxo” de usuários de drogas e traficantes na Cracolândia simplesmente desapareceu entre a noite da última sexta-feira (18) e a manhã do sábado (19). Os dependentes químicos que circulavam por lá e traficantes agora estão em outros locais da cidade, muitos deles na praça Princesa Isabel, que viu a quantidade de barracas aumentar muito nos últimos dias.
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Enquanto órgãos públicos defendem a tese de que isso é resultado do êxito das políticas públicas instaladas na região, especialistas e entidades que lidam com a questão estranham como todos desapareceram como num “passe de mágica”.
“O que estão dizendo é que isso é fruto de um processo de políticas públicas que vem desde os últimos anos. Só que anoiteceu de um jeito e amanheceu de outro. Todos esses esforços já haviam sido feitos antes e nada adiantou. Existe algum outro motivo e não foi nenhum programa social do governo ou da prefeitura”, afirma o padre Julio Lancellotti, da pastoral do Povo da Rua.
Em visita realizada nesta terça-feira (22) na região, a reportagem de VEJA São Paulo ouviu dependentes químicos, policiais, moradores, trabalhadores da região e comerciantes, muitos no anonimato temendo represálias de traficantes.
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Todos sustentam que não houve nada de “abracadabra’ e nenhum dos entrevistados diz acreditar que isso é fruto de trabalho social realizado ali, mas sim um “salve geral” do tráfico alertando que ninguém poderia ficar nas ruas, o que causou a debandada. O motivo desse “salve geral” ninguém soube precisar. Especulações sobram.
Dependendo da versão de quem se ouve, alguns especulam até que isso foi fruto de acordo com o governo estadual, tal como o feito em 2006 com o PCC para encerrar os ataques contra a polícia, conforme revelado à época pelo jornal “O Estado de S.Paulo”. Outra hipótese é a de que com o avanço da grande obra do novo hospital Pérola Byington, que inclusive tem uma das faces voltadas para a rua Helvétia, uma das principais ruas do “fluxo”, as operações do tráfico de drogas na região ficariam expostas.
“Não acredito que houve uma ordem, mas uma retirada dos traficantes por conta da repressão. E se eles não estiverem lá, os usuários também não estão”, afirma o delegado Roberto Monteiro Júnior, titular da 1ª Delegacia Seccional do Decap (Departamento de Polícia Judiciária da Capital), responsável pela região.
A reportagem constatou que parte dos usuários de drogas e traficantes preferiu apenas atravessar a Avenida Rio Branco e ocupar a Praça Princesa Isabel, que já reunia barracas de pessoas em situação de rua.
Integrantes da área de inteligência da Polícia Civil calculam que a praça foi ocupada por cerca de um terço dos dependentes químicos e traficantes que antes circulavam na Cracolândia, algo em torno de 200 pessoas.
A outra parte se esparramou por vários pontos da capital, em locais como Santa Cecília, Santa Ifigênia e próximo à estação Armênia, segundo o padre Júlio Lancellotti.
Durante as quase quatro horas em que a reportagem da Vejinha esteve nas imediações da praça nesta terça-feira, pode-se notar que ao menos 12 novas lonas foram instaladas com fios amarrados em postes e árvores. E não parecia que alguém iria morar lá. A instalação de lonas era uma das táticas dos traficantes na Cracolândia para evitar que as forças policiais avistassem a movimentação de compra e venda de drogas.
Também foi possível flagrar o uso de drogas.
Policiais que patrulhavam a praça disseram que a situação pode ficar ainda pior, já que as folhagens das frondosas árvores dão uma cobertura extra aos traficantes, algo que não ocorria nas ruas abertas da Cracolândia.
A gravação de imagens de compra e venda de drogas foi a base de muitos mandados de prisão que resultaram, de junho de 2021 até agora, na prisão de 92 pessoas acusadas de tráfico na região, segundo o delegado Roberto Monteiro Junior.
Já nas ruas da “antiga” Cracolândia, raramente avista-se alguém andando. Ao tentar entrar na rua Dino Bueno, a reportagem foi barrada por um integrante da GCM (Guarda Civil Metropolitana). Apenas duas pessoas com cachimbos usados para fumar crack passaram pelas barreiras. Em quase todas as esquinas havia policiais militares ou guardas-civis metropolitanos.
Abordados, os moradores preferem não dar entrevista. Uma mulher que passeava com o seu cachorro disse que raramente conseguia levar o animal para passear pelas ruas, algo que está conseguindo fazer tranquilamente nos últimos dias.
Enquanto a calmaria se instalou de um lado da Avenida Rio Branco, do outro, vizinhos estão em polvorosa, sobretudo os que moram na rua Guaianases, que fica defronte à Praça Princesa Isabel.
“Ocupações eram comuns na praça, mas aumentaram muito do final de semana para cá e a cada dia chega mais gente. Só na segunda-feira vi três assaltos na rua”, afirma Sidney Faustino, 65 anos, de uma loja de compra e venda de veículos.
Ele mesmo teve o celular que usava para trabalhar recentemente furtado por um dependente químico.
Enquanto dependentes químicos e traficantes montam suas barracas para ocupar a praça, a vendedora de salgadinhos Isete Santos, 60 anos, foi “despejada” de lá, depois de cerca de 20 anos estacionando o seu carrinho de quitutes na praça para oferecer a quem passava e funcionários da região.
“Eu tive que sair. Desde semana passada ninguém mais compra nada. Eu conseguia vender uns 200 e agora não sai nem 30”, diz. Ela também disse ter sido vítima de furto. “Já tive pacote de biscoito roubado por eles. Se eu conseguisse correr, eles iam ver só”, afirma.
O temor de todos é o aumento da violência. Alguns dizem já ter ouvido barulhos de tiros no final de semana.
A advogada Lucia da Corte de Macedo, de 59 anos, que administra um prédio residencial na rua Guaianases, se diz duplamente indignada. Isso porque ela foi multada pela prefeitura por um lixo despejado pelos dependentes químicos em frente ao seu prédio. Outra é o fato de que dos 42 apartamentos disponíveis, apenas 15 estão locados. E agora ela acha que será difícil alguém se interessar.
“Moro na região desde o ano de 1991. A presença de dependentes químicos e pessoas em situação de rua já é conhecida, mas trazer o tráfico para a nossa porta é outra coisa”, afirma.
Thiago Godoi Cali, que fez seu mestrado e doutorado em Ciências pela Faculdade de Saúde Pública com pesquisas sobre a Cracolândia, diz que a narrativa de fim do território não é verdadeira. “Temos um histórico de intervenções do poder público que tem como base as ações repressivas com a justificativa de coibir o tráfico de drogas. São ações muito imediatas, que não deixam claro como de fato tudo desapareceu”, afirma.
Secretário que cuida de projetos estratégicos da prefeitura, Alexis Vargas diz que o desaparecimento do chamado fluxo não é uma surpresa, mas sim fruto de um trabalho realizado desde 2018 na região que inclui a ampliação de atendimento de pessoas que fazem uso abusivo de drogas, requalificação urbana, combate ao tráfico e compartilhamento de inteligência de diversos órgãos.
“As ações vêm sendo implementadas desde 2018 e isso vem reduzindo a quantidade de pessoas [usuários e traficantes]”, afirma.
Alexis não confirma que houve um “salve geral”, mas reconhece que a retirada do tráfico aconteceu e que grupos se espalharam pela cidade. “Houve uma queda no decorrer do tempo até chegar ao ponto que eles desistem do território”, afirma.
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Segundo disse, na Praça Princesa Isabel já estavam montadas 210 barracas, apesar de apenas 70 pessoas morarem lá. Pelas fotos capturadas pela reportagem e publicadas nesta reportagem, porém, percebe-se a presença de mais de uma centena de pessoas.
“É que tem gente vendendo, alugando, mas falar que a Cracolândia migrou para lá, não migrou”, diz.
De fato algumas lonas têm a inscrição de “vende-se”. A pessoa que estava ao lado de uma dessas lonas se recusou a conversar com a reportagem.
Alexis não descarta que houve aumento de consumo de drogas na praça, bem como houve pulverização dos dependentes químicos e traficantes por outras partes da capital.
“Acho importante dizer que concentrações grandes tornam muito mais difícil a entrada de agentes públicos e em concentrações menores conseguimos ter políticas públicas muito mais eficazes, tanto da área de saúde quanto de segurança pública”, afirma.
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O delegado Roberto Monteiro Júnior afirma que a divisão de inteligência da Polícia Civil já detectou para onde os traficantes foram. Na linha do discurso do secretário, ele afirma que grupos menores são mais fáceis de serem desbaratados do que grandes concentrações.
“Lembrando que tivemos uma ação efetiva da assistência social, de saúde pública e tratamento de dependentes químicos. A partir desse contexto houve a saída dos traficantes, que viram não ter mais condições de vender os produtos”, afirma.
Em nota, a Secretaria de Desenvolvimento Social do governo paulista informou que aplicou R$ 110 milhões em pouco mais de três anos no programa, que consiste em serviços de acolhimento e atendimento social e psíquico dos dependentes químicos na capital.
Ações policiais
Em nota, a SSP (Secretaria de Segurança Pública) informou que as polícias Civil e Militar atuam diariamente na região da Nova Luz, com a realização de ações de policiamento preventivo e ostensivo trabalho investigativo. Do início de 2019 até fevereiro deste ano, foram apreendidas 3,8 toneladas de drogas e 48,3 litros de drogas líquidas na região,além de armas de fogo (18), facas (111) e munições 9552).
A pasta informou ainda que o Denarc (delegacia especializada em narcóticos) realiza trabalho de investigação constante na região para tentar identificar os traficantes e prendê-los.
Pesquisador da região há 18 anos, Thiago Calil afirma que a maior parte das prisões são de pequenos traficantes, muitas vezes eles são também dependentes químicos. “A questão é identificar os traficantes que trazem esses carregamentos de drogas”, afirma.
Ele diz que ações imediatas para problemas complexos resultam em mais danos na região. “É uma estratégia estética, uma maquiagem urbana. Precisamos questionar o que a prefeitura ofertou para que isso sumisse de um dia para o outro”, questiona.
O pesquisador afirma que apenas prender os traficantes não vai resolver uma questão que se arrasta há 30 anos. “É fundamental ter uma política intersetorial, que envolva habitação, moradia, cultura, cuidado, assistência e diálogo com cuidados pensados a médio e longo prazo. Esforços muito imediatistas não vão barrar o tráfico”, afirma.
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